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Há um lugar onde árabes e judeus vivem em paz: na música

Sob regência do maestro Daniel Barenboim, eles convivem, interagem e criam opiniões próprias sobre a queda de braço que seus governos travam na ONU

Por Cecília Araújo, de Berlim
24 set 2011, 11h22

“Nossa pretensão não é trazer a paz ao Oriente Médio. O que essa orquestra pode trazer? Compreensão, paciência, coragem e curiosidade para escutar a narrativa do outro”

Daniel Barenboim, maestro

Enquanto os líderes palestino e israelense travam conflitos por territórios no Oriente Médio e discussões na Assembleia Geral da ONU, alguns de seus conterrâneos colocam em prática algo que para seus chefes de estado ainda não passa de uma utopia: o diálogo. Todas as vezes que a Orquestra West-Eastern Divan sobe ao palco – em raras apresentações anuais, como a que ocorreu em maio passado na Filarmônica de Berlim – a perfeita sintonia entre os músicos emociona, principalmente quem conhece a história do grupo. O projeto nasceu em 1999, quando o pianista e maestro israelita de origem argentina Daniel Barenboim, ao lado do intelectual palestino Edward Said, reuniu pela primeira vez jovens de diferentes nacionalidades, especialmente do Oriente Médio, em um conjunto definido como multicultural. Entre os integrantes, israelenses e árabes que, em meio a discussões acaloradas, aprenderam a ouvir e respeitar a opinião alheia. A mesma mensagem também seria passada por meio de workshops. O nome “Divan” vem da tradição árabe de contar histórias, poemas e tocar instrumentos como uma forma de interagir, compartilhar, solidarizar e humanizar. Afinal, em uma orquestra não há protagonistas, todos trabalham juntos, permitindo que cada instrumento tenha seu momento de destaque. E quando um deles sola, os outros param e escutam com atenção – princípio que acaba se estendendo também ao debate de temas polêmicos.

Existem israelenses na orquestra que são a favor de uma solução baseada nos dois estados, a mesma defendida pelos palestinos; e há também aqueles que são mais céticos em relação ao assunto. Mas todos aceitam ouvir as opiniões contrárias. Especialmente aqueles que fazem parte da orquestra desde o seu início, mudaram muito sua forma de enxergar a questão. “Mesmo que não tenham mudado de posicionamento, pelo menos mudaram a forma de ver o outro: não mais como inimigo, mas como ser humano. Um dos mais importantes aprendizados é que o outro lado também é composto por pessoas com esperanças e sonhos que não podem ser ignorados”, explica ao site de VEJA Carsten Siebert, diretor da fundação da orquestra em Berlim. O que os une é o reconhecimento de que a solução para o conflito não deve ser militar. “Os admiradores da orquestra também são uma multidão sem fronteiras. Mesmo com diferentes opiniões – o que obviamente existe -, o senso de respeito pessoal supera qualquer divisão”, pontua.

Em seus 12 anos de existência, a orquestra passou por outros momentos de tensão, como durante a Segunda Intifada (2000), a Segunda Guerra do Líbano (2006) e a Operação Chumbo Fundido (2008), ofensiva militar das forças de Israel na Faixa de Gaza. No início, Edward Said convidava os músicos, antes ou depois dos ensaios, a debater sobre as questões políticas que dividiam seus países. Todos ouviam – mas só falava quem tivesse vontade. Com o passar do tempo, as conversas se tornaram cada vez mais naturais e menos formais. Artificial seria se ignorassem o contexto político em que viviam, consideram os integrantes do grupo. O alemão Paul Smaczny, que dirigiu um documentário sobre a orquestra, conta que presenciou momentos de discussões enérgicas – embora jamais agressivas. “O máximo a que os músicos já chegaram foi deixar a sala de debate, interrompendo as discussões, ou levantar um pouco a voz. Eles costumam ter opiniões fortes”, conta.

Dica de filme

‘O Conhecimento é o Começo’

Cartaz documentário 'O conhecimento é o começo'
Cartaz documentário ‘O conhecimento é o começo’ (VEJA)

No documentário Knowledge is the beginning (2005), o diretor alemão Paul Smaczny faz um convite à tolerância entre os povos do Oriente Médio e homenageia a amizade entre o israelita Daniel Barenboim e o palestino Edward Said, que culminou na criação da Orquestra West-Eastern Divan.

Proximidade e identificação – Smaczny começou a rodar o filme Knowledge is the Beginning (confira informações no quadro ao lado) no ano de sua fundação. Na época, filmava um perfil de Barenboim por seus 60 anos de aniversário, e foi convidado para acompanhar a orquestra. “A intenção inicial não era formar uma orquestra de apresentações regulares. Tudo começou quando Barenboim e Said organizaram um workshop em Weimar. Deu tão certo, que decidiram levar adiante o projeto”, lembra. Desde então, Smaczny nunca mais se afastou – nem depois do fim da filmagem, em 2006. E ele garante que, se nas primeiras semanas havia uma distância natural entre israelenses e árabes, o tempo permitiu que eles se aproximassem, fazendo surgir grandes amizades. “Como passavam muito tempo juntos, aos poucos foram se entendendo, criando uma identificação e descobrindo afinidades”, observa.

Said era muito admirado pelos palestinos, e Barenboim, visto como um grande músico pelos israelenses. Todos os instrumentistas se sentiam entusiasmados com a oportunidade de trabalhar com os dois, que, embora fossem amigos muito próximos há anos, nunca exigiram que os membros da orquestra seguissem seus passos. “Eles não pregavam isso. A estratégia era fazê-los conviver através da música até que desenvolvessem um vínculo pessoal que ao menos os tornasse mais abertos e atentos aos pensamentos alheios.” O objetivo do projeto nunca foi homogeneizar as opiniões, salienta. “Não faria sentido tentar convencer as pessoas a defenderem uma opinião oficial. Pelo contrário, a pluralidade de opiniões é crucial”, completa o diretor Carsten Siebert, ressaltando que a instituição também não tem um posicionamento sobre qualquer tema político.

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A ideia do projeto de espalhar uma nova alternativa para analisar a questão do Oriente Médio tem sido levada adiante mesmo depois da morte de Said, em 2003. Ele defendia firmemente que o objetivo da orquestra era fazer as pessoas refletirem sobre como identidades diferentes podem conviver em um mesmo espaço, onde tantas histórias coexistem. Barenboim costuma falar da “república independente” da Orquestra West-Eastern Divan. Para ele, há inúmeras formas de se abordar até os mais “intratáveis” conflitos, na base do respeito mútuo e da visão compartilhada de que a paz não será alcançada com ações militares. Nas apresentações, o maestro – que já recebeu os prêmios Paz de Vestfália e da Tolerância da Academia Europeia das Ciências e das Artes e teve a candidatura ao Nobel da Paz anunciada pela Academia Argentina de Letras em agosto – ressalta sua missão: “Este projeto tem sido muitas vezes descrito de forma distorcida, como uma orquestra que promove a paz. Mas nossa pretensão não é trazer a paz ao Oriente Médio. O que essa orquestra pode trazer? Compreensão, paciência, coragem e curiosidade para escutar a narrativa do outro”.

O maestro Daniel Barenboim e os membros da Orquestra West-Eastern Divan, na Filarmônica de Berlim
O maestro Daniel Barenboim e os membros da Orquestra West-Eastern Divan, na Filarmônica de Berlim (VEJA)

Tour mundial – Viajar com a orquestra tem um custo: deixar de lado os planos de férias de verão, período em que realizam a turnê mundial. Mas o esforço é válido. Nos primeiros anos, israelenses e sírios (países que também vivem um tenso conflito na fronteira) participavam do grupo durante as férias do serviço militar. Na filarmônica, eles se sentavam um ao lado do outro para tocar, sabendo que, de volta à trincheira, poderiam ser obrigados a matar um ao outro. “Ao imaginarem tal cenário, eles percebiam o quão bobo é pegar em armas para matar alguém tão legal e parecido pessoalmente”, analisa Siebert. A partir disso, eles poderiam trazer essa nova maneira de pensar, difundindo sua mensagem a outras nações. “Tocar em Catar, onde já comparecemos duas vezes, foi uma experiência completamente positiva. Não demorou muito para que israelenses superassem suas apreensões sobre tocar em um país árabe. Durante nossa estada, demos uma série de workshops em escolas locais. A expectativa é de que essas crianças tenham uma visão diferente dos israelenses quando crescerem”, conta Siebert.

Ele destaca ainda que a orquestra sempre foi recebida calorosamente por onde passou. “Os concertos lotam, nunca houve nenhuma demonstração de desaprovação ou incidentes constrangedores durante nossas turnês, nem mesmo em Ramallah, em 2005, certamente a situação política mais perigosa que já enfrentamos. Claro que foi uma experiência tensa, muitas pessoas se sentiram expostas, mas a empolgação de fazer algo que ninguém jamais imaginou ser possível superou as preocupações pessoais.” Edward Said disse uma vez que os “muros entre as pessoas não são a solução para os problemas que as dividem”. E é com essa mensagem que a orquestra vai além do seu repertório musical – ganhando significativa importância política.

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