Terrorismo islamista: o que fazer com Adel, Abdel e os outros?
Falhas no sistema judicial e na vigilância abriram caminho a muitos atentados na França e outras ainda vão acontecer
A polícia prende e a justiça solta. Quantas vezes já não ouvimos no Brasil esse tipo de argumentação em relação a criminosos comuns?
Na França, preservadas as diferenças, acontece o mesmo. E, tragicamente, muitas vezes é verdade. O espantoso caso do padre Jacques Hemel, degolado quando celebrava a missa para uma modestíssima congregação de três freiras e um casal de idosos – o marido foi gravemente ferido -, confirmou um grave equívoco da justiça.
Adel Kermiche havia sido devolvido duas vezes à França por tentar entrar para o Estado Islâmico na Síria, passou dois meses preso por formação de quadrilha para praticar atos terroristas e, desde março, estava em liberdade condicional, com tornozeleira eletrônica. A juíza responsável por seu caso acreditou quando ele disse que queria “retomar a vida, os amigos, a família”.
A promotoria protestou, mas rosto inocente de Kermiche, de 19 anos, pode ter ajudado. Ele ficou livre para circular na parte da manhã em Saint-Etienne-du-Rouvray, uma cidadezinha da Normandia cuja mesquita foi construída num terreno doado pela igreja católica.
Ele e o cúmplice, Abdel Malik Petitjean, invadiram a igreja quase vazia, fizeram o padre aposentado que substituía o titular se ajoelhar e o mataram a facadas no pescoço e no tórax. O outro homem presente, um paroquiano de 86 anos, teve que filmar a execução pelo celular e depois também foi esfaqueado. Ferido gravemente, fingiu-se de morto.
Desde 12 de janeiro de 2015, quando houve o ataque contra a redação da jornal satírico Charlie Hebdo, 236 pessoas foram mortas em atos de terrorismo na França. Em pelo menos sete atentados, com ou sem vítimas, os autores já tinham sido presos ou haviam aparecido no radar dos serviços de segurança.
Aparecido e desaparecido: toda vigilância tem que ser feita e renovada com autorização judicial. Alguns terroristas haviam sido tirados da lista dias antes de suas atrocidades
Como existem mais de 10 mil pessoas com ficha S, o nome do arquivo dos vigiados, é impossível acompanhar criteriosamente todas elas, segundo especialistas em segurança. Para cada suspeito, são necessários dez controladores.
É claro que políticos de oposição já fizeram propostas para que todas essas pessoas sejam encarceradas. “É contra o estado de direito”, responde toda vez Bernard Cazeneuve, o ministro do Interior que tem sobrevivido às últimas crises devido à paralisia geral do governo de François Hollande.
A expressão sombria e as homenagens fúnebres já estão se tornando tão frequentes que Hollande parece ter assumido o papel de agente funerário.
O caso da liberdade condicional com tornozeleira dificilmente se repetirá – ao todo, treze pessoas estão nesse regime e o número deverá chegar a zero. Mas o que fazer com os dez mil suspeitos identificados?
Como no Brasil, no caso de criminosos comuns, existem juízes que hesitam em dar penas de prisão porque, tal como em outros países europeus, as penitenciárias francesas são grandes focos de recrutamento e radicalização.
Centros especiais de detenção não estão fora do mapa num futuro sombrio em que os atentados terroristas se multipliquem. Se começarem a acontecer dois, três, quatro ataques por dia, a opinião pública forçará mudanças que hoje parecem fora de cogitação.
Também não é impensável a expulsão de franceses radicalizados que tenham dupla cidadania, uma proposta que o governo fez e, diante das reações negativas de seu próprio partido, retirou, mas pode ser reativada.
No âmbito estratégico, parece mais complexo ainda. O Estado Islâmico, com seu enorme poder de atração, só perderia a vantagem de ter um território, na Síria e no Iraque, com uma intervenção militar em grande escala, incluindo bombardeios que inevitavelmente matariam inocentes. Não existe disposição nem da opinião pública nem das lideranças políticas para isso, por enquanto.
Para prosperar, o terrorismo jihadista conta também com o apoio explícito ou implícito do meio social onde seus autores vivem. São frequentes os casos em que, logo depois de identificados os assassinos, amigos e familiares dizem como eles eram normais, educados e amáveis. “Meu filho é bom”, disse, em prantos, a mãe de Abdel Malik Petitjean, um dos assassinos do padre. Ela teve que dar uma amostra de DNA para a identificação do filho. Seguindo o protocolo de “neutralização” imediata, atiradores de elite dispararam na cabeça, desfigurando seu rosto.
Como no caso de Abdel e Adel, será que ninguém nota os sumiços, os comentários de natureza político-religiosa, as barbas que crescem? Mais difícil do que reconhecer que estas mudanças de comportamentos são percebidas, é admitir que são endossadas.
A resistência ao terrorismo é complicada, mas não impossível. Na virada do século XIX para o XX, a Europa e os Estados Unidos passaram pelo auge da era dos atentados anarquistas. O rei Humberto I da Itália foi morto em 1900 pelo anarquista Gaetano Bresci. William McKinley, o presidente americano assassinado que sempre aparece como uma vaga referência, levou duas balas no peito durante a Exposição Panamericana de 1901. Antes dele, o presidente francês Sadi Carnot também havia tombado. O maior atentado da época foi em 1893, no teatro lírico de Barcelona, em 1893, com 72 mortos e feridos.
A tática anarquista inspirou o ultra-nacionalista sérvio Gavrilo Princip a assassinar o herdeiro do trono do império austríaco, Francisco Fernando, em 1914. O atentado de Sarajevo empurrou a Europa para a I Guerra Mundial.
Apesar de haver quem faça paralelismos entre a situação da época e hoje, não existe nada remotamente parecido à conflagração entre potências europeias de então. Como Adel e Abdel, outros fanáticos islamistas continuarão a atacar, mas ainda estamos longe de ser os sonâmbulos marchando para a autodestruição.