Fala, Nunes: deputado pode desvendar guerra de Trump e agências
Presidente da Comissão de Inteligência sabe mais do que diz sobre escutas mostrando contatos de assessores presidenciais com agentes russos
Imaginem a reforma da previdência ser derrotada no Congresso nacional e multipliquem por cem. É este mais ou menos o tamanho da derrota de Donald Trump com a retirada do projeto de substituição do Obamacare, o combalido sistema de saúde que os republicanos sempre abominaram e não conseguiram mudar por enormes divergências internas.
Agora, imaginem uma questão com, potencialmente, maiores consequências ainda. É este o tamanho da guerra travada por meio de vazamentos, declarações públicas e tuítes abusados entre Donald Trump e a cúpula dos serviços de inteligência, da ativa ou já substituída.
Resumo a jato: na etapa final da campanha presidencial, depois da espantosa vitória de Trump, durante o período de transição e a partir do início do novo governo, revelações passadas à imprensa de oposição ao presidente provocaram escândalos e a queda de um assessor importante, o general Michael Flynn.
As informações, às vezes com origem duvidosa ou baseadas no inescapável sistema de escuta dos serviços secretos americanos, sempre convergiam para contatos suspeitos entre assessores de Trump e “os russos” – o embaixador, milionários ligados a Vladimir Putin e outros elementos.
Na maior conhecida reações, Trump teve um de seus rompantes de sábado de manhã e tuitou que a Trump Tower, onde morava e trabalhava, havia sido “grampeada” por Barack Obama. Os céus desabaram sobre a sua acostumada cabeça.
Não obstante houvesse algumas reportagens anteriores mencionando exatamente as escutas da equipe de Trump, incluindo uma do New York Times cujo título foi mudado de forma a não justificar de alguma forma o presidente, odiado pelo jornal. As forças anti-trumpistas exigiram retratação, pedido de desculpas a Obama e talvez uma longa permanência no cantinho do castigo.
Entrou, então, em cena Devin Nunes, deputado republicano por uma região do interior da Califórnia, onde seus pais são produtores rurais. A família é de origem açoriana, daí o sobrenome português.
TRAJA PRETA – Nunes preside a Comissão Permanente de Inteligência da Câmara e, assim, tem acesso a informações qualificadas. Tem também uma grande simpatia por Trump, usada agora por adversários para invalidar a bomba que soltou nesse campo minado: uma fonte do ramo revelou a ele que os serviços secretos haviam captado “incidentalmente” conversas de assessores de Trump durante a transição.
A escuta “incidental” é um detalhe vital. Pela lei, criada para controlar o poder massacrante proporcionado pela capacidade dos serviços de inteligência de ouvir absolutamente tudo, quando cidadão americanos aparecem em conversas interceptadas com estrangeiros, o nome deles não pode aparecer nos relatórios.
Apenas 20 pessoas da cúpula da inteligência e do governo têm poder para “desmascarar” estes nomes, ou seja, tirar a tarja preta que os protege enquanto não houver mandatos e outros procedimentos exigidos pela lei para grampear cidadãos americanos.
Evidentemente, os nomes foram desmascarados, a começar pelo de Michael Flynn, obrigado a renunciar como conselheiro de Segurança Nacional depois da revelação sobre conversas não declaradas com Sergey Kislyak, o peripatético embaixador russo.
Outro gravemente enrolado é o lobista Paul Manafort, que Trump tirou do comando de sua campanha depois da revelação sobre muitos anos de caros serviços prestados ao partido ucraniano pró-Rússia.
Pouco antes da revelação de Nunes, a agência AP havia dado um furo mais comprometedor ainda: a serviço do magnata russo Oleg Deripaska, Manafort propôs em 2005 um plano de ação para influenciar a opinião pública e de cúpula, na Europa e nos Estados Unidos, em favor de Vladimir Putin.
Esse tipo de contato altamente suspeito entre pessoas próximas a Trump e o governo russo levanta a hipótese de que os serviços secretos americanos venham cometendo crimes ao divulgar escutas clandestinas e nomes de americanos envolvidos por terem informações que comprometem terminalmente o novo presidente. Move-os, assim, o interesse nacional.
A outra hipótese implica num tipo de crime mais grave ainda: os vazadores teriam motivação política para prejudicar Trump, uma interferência quase impensável na esfera doméstica. Simpatias partidárias estariam na base da motivação.
SESSÃO FECHADA – Nunes não foi muito correto ao visitar a Casa Branca só para falar das novas informações diretamente ao presidente – e levou pauladas metafóricas de todos os lados por causa disso. Foi uma exceção no comportamento de um deputado que parece equilibrado e honesto.
Trump, claro, comemorou como vitória e se considerou eximido de culpa por causa do tuíte sobre os “grampos de Obama”. Teve pouco tempo para comemorar, o que vem acontecendo sucessivamente, antes de ser tragado pela derrota no projeto de votar a substituição do Obamacare.
As próximas etapas da comissão que Nunes preside, em contrapartida com o democrata Adam Schiff, devem ser acompanhadas com muita atenção. O capítulo mais esperado seria uma audiência pública com James Clapper, ex-diretor de Segurança Nacional, John Brennan, ex-diretor da CIA, e Sally Yates, ex-secretária interina da Justiça. Mas Nunes decidiu fazer uma sessão fechada.
Numa sessão com James Comey, que aparentemente eximiu Obama de qualquer escuta (aparentemente porque não inclui a tal interceptação incidental), o deputado Trey Gowdy, com seu jeito de caipira sulista e esperteza de ex-promotor, abriu um capítulo interessante.
Usando o método de fazer perguntas que com certeza não seriam respondidas para expor os nomes de todos os integrantes do governo anterior que poderiam “desmascarar” os nomes dos americanos, Gowdy enumerou: John Brennan, a ex-assessora de Segurança Nacional Susan Rice, o ex-assessor Ben Rhodes, a ex-secretária da Justiça Loretta Lynch e sua vice, do Sally Yates. Já dá para tirar muitas conclusões sobre uma chapa que não vai parar de ferver. Dos dois lados.