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Mesmo com 88% das obras em andamento, construção civil vive impasse

Obras no mercado imobiliário deslancham, mas medidas restritivas para estandes de venda geram apreensão no setor; internet ainda não absorve toda a demanda

Por Felipe Mendes Atualizado em 5 Maio 2020, 19h29 - Publicado em 5 Maio 2020, 09h41

Não se assuste se, por acaso, o barulho de obras começar a rondar o seu lar em plena quarentena. Antes da pandemia causada pelo novo coronavírus começar a ditar as regras, o mercado imobiliário vivia pleno aquecimento. E, com o aumento no número de lançamentos no início do ano, as incorporadoras continuam trabalhando a todo o vapor para erguer prédios, mesmo com as medidas restritivas para conter a disseminação da Covid-19. No primeiro bimestre do ano, segundo números da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), os lançamentos de imóveis somaram 6.781 unidades, alta de 34,6% em relação a igual período de 2019. As vendas do mercado, por sua vez, chegaram a 19.077 ao fim de fevereiro, avanço de 25,9% frente aos dois primeiros meses do ano anterior. Tudo parecia correr bem. Mas, a propagação da enfermidade, que já fez mais de 7.000 vítimas fatais no país, coloca uma dúvida sobre o futuro do mercado, que se recuperava depois de anos de contrações.

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O estímulo ao sonho da casa própria, uma das chaves que projetava a recuperação da construção civil em 2020, se deu por conta da taxa básica de juros, a Selic, atrativa. Porém, em um movimento de instabilidade do mercado de trabalho, como uma das consequências da pandemia, o mercado imobiliário precisará de mais medidas além dos juros baixos para se manter ativo e atrativo. A Caixa Econômica Federal anunciou recentemente um pacote de medidas para estimular a construção civil durante a crise. Serão 43 bilhões de reais para antecipar recursos às incorporadoras e dar mais alívio aos mutuários da casa própria, além de incentivar as pessoas físicas a tomarem crédito imobiliário. Não deixa de ser, sobretudo, mais uma aposta do governo federal na construção civil, setor que viu seu Produto Interno Bruto (PIB) crescer 1,6% em 2019, ante um crescimento nacional de apenas 1,1%. “As medidas anunciadas pela Caixa dão tranquilidade para que o setor continue gerando emprego, com acesso a capital de giro e possibilidade de antecipação de recursos para manter o fluxo das obras”, diz Luiz França, presidente da Abrainc.

Além de tentar reduzir o déficit habitacional atual de 7,8 milhões de moradias, os esforços do governo, com a liberação de crédito por meio da Caixa, têm o intuito de não deixar o mercado parar. Isso acontece porque a construção civil é uma das grandes cadeias empregadoras do país. Hoje, o setor é responsável por mais de 2 milhões de empregos diretos. Se levado em conta também os informais, são 6,3 milhões de operários. Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, o Caged, o ano de 2019 registrou um saldo positivo de 71.115 postos de trabalho criados, índice 315% superior em relação ao ano anterior. A tendência, no entanto, é que esses números recuem, apesar das obras em curso, arrefecendo as expectativas de desenvolvimento de um setor que vinha em franca recuperação. Segundo um levantamento realizado no fim de abril pela Abrainc, 90% das empresas que atuam no ‘Minha Casa, Minha Vida’ e 77% das incorporadoras voltadas ao segmento de médio e alto padrão preveem redução de até 40% em suas projeções de vendas para o ano.

“O setor da construção começou a ganhar protagonismo há algum tempo, quando o governo percebeu que a economia crescia a taxas baixas e que uma razão para isso seria a falta de investimentos em construção”, diz Ana Maria Castelo, coordenadora de projetos da construção do Ibre/FGV. “Em 2009, o PIB do país ficou praticamente estável e o setor da construção foi um dos principais responsáveis por isso. Mas hoje o cenário é diferente. Estamos num patamar muito baixo, terminando de passar por uma longa crise. Se as obras pararem, o prejuízo será muito grande”, complementa. Em 2019, pela primeira vez desde 2013, o preço médio de locação subiu mais do que a inflação. A alta real, subtraindo-se a inflação, foi de 0,60% no ano, segundo o Índice FipeZap.

Maior programa de habitação da história do Brasil, o ‘Minha Casa, Minha Vida’, criado em 2009 no governo Lula, surgiu como uma tentativa de diminuir o déficit habitacional do país — à época, calculado em 5,7 milhões de domicílios pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Não foram poucas as incorporadoras que viram o segmento como a nova “joia da coroa” e resolveram migrar para o mercado, aproveitando-se dos subsídios capitaneados pelo governo e pela forte descapitalização que afetava, sobretudo, as construtoras de imóveis de médio e alto padrão. Embora bem-sucedido – o programa ainda é responsável por mais de 70% das construções do mercado imobiliário atualmente –, o Minha Casa, Minha Vida sofreu com a especulação imobiliária, com a coerção de facções criminosas e da milícia – sobretudo em moradias da faixa mais baixa. Hoje, o modelo foi ajustado. Desde o governo de Michel Temer, o programa já não desenvolve novos projetos pela faixa 1, onde os subsídios da União chegam a cerca de 90% do valor do imóvel, e a oferta de unidades por meio do faixa 1,5, oferecido a famílias com renda mensal de até 2.600 reais, também diminui paulatinamente. Apesar disso, os investimentos das empresas nas faixas mais altas, onde os subsídios para moradia são menores, sustentam o programa.

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Para Wilson Amaral, atual CEO da Pacaembu Construtora, que atua principalmente, no interior de São Paulo e constrói por meio das faixas 2 e 3 do programa Minha Casa Minha Vida (o faixa 2 atende famílias com renda mensal de até 4.000 reais, com subsídios de até 29.000 reais por meio do FGTS; já no faixa 3, o foco principal é famílias com renda de até 9.000 reais por mês), as consequências ao setor imobiliário do coronavírus podem vir de algumas medidas restritivas impostas por governos locais. Se, por um lado, os prédios estão sendo construídos, os estandes de venda estão fechados, e isso impacta a programação das construtoras para a continuidade de obras durante o restante do ano. O executivo avalia que a demora do governo de São Paulo para a sinalização de retomada do comércio pode atrapalhar o cronograma de futuros lançamentos futuros. “Temos 12 obras em fase inicial agora. Elas vão terminar próximo a março de 2021. O problema agora é que estamos com os estandes de venda fechados. E eu preciso lançar novos empreendimentos em maio, junho e julho para garantir que nós tenhamos obras quando essas que estão em andamento acabarem”, afirma Amaral. Para iniciar a construção de um projeto, a Pacaembu vende, ao menos, 60% dos imóveis.

Segundo Jorge Cury, da incorporadora Trisul, uma pesquisa do mercado, distribuída internamente para as construtoras, indica que cerca de 7% dos trabalhadores da construção civil foram infectados com o vírus — um número razoavelmente baixo — e que não ocorreram óbitos, o que faz com que as obras continuem rodando sem grandes pressões de órgãos públicos. Para evitar a proliferação do vírus nos canteiros de obras, as empresas tomaram como medida a higienização das mãos, medição de temperatura, turnos para os operários e afastamento dos trabalhadores do grupo de risco. Cury, endossa, no entanto, o coro para a reabertura dos estandes, seguindo medidas de prevenção. “Nós treinamos a nossa equipe de corretores para o momento pós-pandemia. Vamos afastar as mesas dos estandes, e colocar máscaras e álcool em gel à disposição do cliente”, diz.

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“Fomos todos pegos no contrapé por esse vírus. Em março, tivemos uma queda de 50% nas vendas em relação ao período pré-pandemia”, diz Abrão Muszkat, da You, Inc (You Inc./Divulgação)

Para tentar fazer a roda girar, a venda de imóveis vive um processo de transformação digital “forçado”, já que os estandes estão fechados. Para mitigar as perdas e seguir lançando novas unidades, a corrida pelo cliente se dá por meio da internet. “Hoje, o consumidor está sendo disputado a ouro no mercado digital. Quem for criativo na forma como se chega ao cliente, vai se sair vitorioso nessa crise”, diz Abrão Muszkat, CEO e fundador da You, Inc. “A venda digital representa 30% do nosso faturamento. Isso se manteve, mas é um limite. Não vejo como aumentar esse índice porque as pessoas, quando vão comprar um imóvel, querem saber onde o sol nasce, como é a varanda, mesmo que você tenha o tour virtual”. A construtora, que desenvolve projetos de apartamentos compactos, preparava-se para sua oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês), mas viu seus planos serem adiados por conta da pandemia. Os lançamentos da empresa para 2020, por sua vez, passaram de um Valor Geral de Vendas (VGV) de 1,2 bilhão de reais para cerca de 800 milhões de reais. “Para atingir a nossa meta, nós teríamos de fazer em seis meses o que estava projetado para o ano inteiro. Não seria algo fácil. Então, preferimos revisar os nossos números em detrimento de uma meta que não seria atingível”, explica Muszkat.

Para Alexandre Lafer Frankel, CEO da Vitacon, incorporadora conhecida por lançar unidades de baixa metragem, o impacto do vírus na sociedade será primordial para uma mudança no comportamento do setor. Além de forçar a digitalização, ele acredita que os financiamentos de longo prazo vão se tornar “coisa do passado” no mercado imobiliário. Até por isso, lançou recentemente um novo projeto: a Housi, uma plataforma de gestão de locação de imóveis voltada a investidores e nômades da habitação. A aposta de Frankel é oferecer uma taxa de aluguel fixa a investidores e cuidar da procura por locatários, além de se responsabilizar pela decoração e pela limpeza do ambiente. Mesmo durante o período de vacância, o executivo garante o retorno mensal. Parece um movimento insólito, mas ele acredita que a proposta irá vingar. “A Housi faz com que o apartamento se transforme num produto de renda fixa”, diz. “O nosso foco é atrair investidores que querem migrar de aplicações de renda variável, já que há muito marinheiro de primeira viagem na bolsa de valores, e de investimentos em renda fixa, que não está rendendo muito por conta do juro baixo”. Ele acredita que as vendas do mercado imobiliário devam cair a um patamar próximo ao que era em 2016, mas que a retomada será rápida. “Uma vez cessado o efeito causador que é a doença em si, teremos um cenário muito favorável no ponto de vista da taxa de juros, o que indica que a recuperação será mais rápida”, projeta Frankel.

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Distratos

A principal consternação das incorporadoras imobiliárias em tempos de pandemia, no entanto, é de que a incerteza de momento leve o setor a conviver com uma nova onda de distratos. Em 2016, auge da crise econômica que assolou o país em meio ao processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, 41% dos contratos firmados com as construtoras foram alvo de distrato, e as empresas tiveram de desembolsar cerca de 1,1 bilhão de reais nestas negociações – para se ter ideia do caos, na época, o número de quebra de contratos chegou a ser superior à quantidade de vendas do mercado. Antes, um comprador que optasse por cancelar o negócio poderia obter até 90% do valor investido de volta. Como o mercado foi alvo da especulação imobiliária, muitas pessoas investiam em imóveis esperando uma valorização no momento de entrega das chaves. Isso acabou criando uma bolha no setor. Mas, no fim de 2018, o governo sancionou a lei do distrato (nº 13.786/18), em que o percentual a ser restituído, em caso de desistência justificada, passou para entre 50% e 75%. É uma das causas para o volume de quebra de contratos ainda estar baixo. “Nós estamos evitando o máximo possível chegar ao ponto do distrato. Estamos renegociando as parcelas das pessoas que acusam algum tipo de problema. Com isso, a pessoa consegue ter um fluxo de caixa para atender as obrigações no futuro”, diz Jorge Cury, da Trisul. “De modo geral, essa lei será testada agora”.

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