Decisão de tributar fundos exclusivos e offshores tem eficácia incerta
Para que o arcabouço fiscal funcione, o governo ignora uma ação essencial: o corte dos gastos públicos
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tornou-se nos últimos meses uma espécie de caçador de tesouros. Para que o arcabouço fiscal desenhado por sua equipe funcione, só existem dois caminhos possíveis. O primeiro deles é o aumento expressivo da arrecadação, de forma a garantir os recursos necessários para o equilíbrio das contas públicas. A segunda rota, o corte de despesas, está fora de cogitação, dada a disposição reiterada do governo Lula em fazer o contrário: gastar. Nesse contexto, Haddad e sua equipe têm perseguido, de maneira obsessiva, novas fontes de tributação. Depois de atacar as apostas on-line e taxar as compras de produtos em sites asiáticos de comércio eletrônico, o presidente Lula assinou uma medida provisória (MP) que prevê a tributação dos fundos exclusivos, também conhecidos como fundos dos “super-ricos”. No mesmo embalo, o governo encaminhou ao Congresso um projeto de lei em regime de urgência que trata da tributação das aplicações financeiras no exterior por meio de offshore, como são chamadas as empresas que administram ativos fora do país. Segundo cálculos da ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, o governo precisará de 168 bilhões de reais de receitas extras para zerar o déficit primário no próximo ano — eis aí a verdadeira caça ao “tesouro”.
Pairam dúvidas sobre a eficácia da iniciativa. Agora, os fundos exclusivos ficarão sujeitos à tributação periódica pela alíquota de 15%, como ocorre com os demais ativos de investimentos que são taxados duas vezes ao ano. Com a proposta, o governo pretende adicionar 24 bilhões de reais em receitas até 2026, mas a estimativa é considerada otimista demais por analistas, além de provocar efeitos adversos na economia. “A intenção do governo de redistribuir a carga tributária para as pessoas de mais renda é acertada, mas seria melhor considerar isso em um plano amplo de reforma do imposto de renda, para evitar distorções e fuga de capitais do país”, diz Ricardo Lacerda, presidente do banco de investimentos BR Partners.
Também causa estranheza o fato de Haddad sair à caça de novos meios de arrecadação ao largo da reforma tributária, que deveria ser o foro adequado para esse tipo de discussão. “O governo quer arrecadar de qualquer jeito, então vai pegando migalhas e brechas para encontrar formas de tributar”, diz o economista Marcos Cintra, professor da Fundação Getulio Vargas e ex-secretário da Receita Federal. “Isso é muito ruim para o sistema tributário, porque é uma ação pontual, que acaba criando um novo sistema tributário com alterações que atendem apenas às necessidades específicas de um determinado momento.”
O mesmo raciocínio vale para a proposta de nova tributação dos fundos offshore. No Brasil, atribuiu-se a esse mecanismo de proteção de patrimônio uma imagem negativa, como se fosse um instrumento financeiro ilegítimo. Desde que declaradas à Receita Federal, as empresas offshore são legais — e, a propósito, usadas por cidadãos de diversas partes do mundo. Em 2021, o então ministro da Economia, Paulo Guedes, admitiu que abriu uma offshore em um paraíso fiscal para fugir dos impostos brasileiros, e sua confissão gerou um saraivada de críticas. Não deixou de ser irônico o fato de o responsável à época pela economia buscar meios de escapar da sanha tributária brasileira.
Os novos tributos anunciados pelo governo vieram acompanhados da velha ladainha que opõe ricos e pobres. É inegável que o sistema tributário brasileiro tem características perversas e penaliza mais a população de baixa renda, mas é igualmente verdadeiro o fato de que aumentar o peso do Estado nos ombros de quem está no topo da pirâmide não costuma ser uma medida de efeito certeiro. A Argentina e a França tentaram fazer isso e o que se viu foi uma debandada de afortunados para outros países. No Brasil, os primeiros boatos sobre a eventual taxação dos fundos exclusivos levaram à queda imediata da captação líquida desses ativos, como se observa no quadro acima. O dinheiro retirado certamente vai em busca de novos destinos, e talvez tenha desembarcado em outros países. Ou seja: o governo faz uma previsão de arrecadação em cima de um número de recursos, mas ocorre uma erosão da base.
Evidentemente, o assunto é complexo, suscita polêmicas e há nomes respeitados a favor da cobrança. “A falta de taxação dos fundos exclusivos é algo inacreditável, porque outros fundos são tributados”, diz o economista José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados. Verdade. Mas a questão é a eficiência dessa medida, a forma como foi feita, aproveitando-se do discurso “ricos contra pobres” e às pressas, para sustentar a adoção do arcabouço fiscal. Haja tesouro.
Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857