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As limitações soberanas da Argentina

Para a ex-economista-chefe do Banco Mundial, Anne Krueger, decisão da Suprema Corte dos EUA aumenta o risco em todo o mercado global de dívida soberana

Por Anne Krueger
23 jul 2014, 07h59

A dívida soberana voltou aos noticiários recentemente, mas desta vez por culpa da Suprema Corte dos Estados Unidos, da qual partiu uma decisão sobre dívida pública argentina. Como resultado da decisão, um assunto já complicado provavelmente se complicará ainda mais.

A dívida soberana tem sido uma das principais características do sistema financeiro internacional por séculos. Os reis pediam emprestado, muitas vezes internacionalmente, para financiar guerras e outras despesas. Quando não conseguiam pagar, como acontecia muitas vezes, as soberanias ficavam inadimplentes.

Hoje, as soberanias são mais frequentemente governos eleitos democraticamente, mas elas ainda se endividam. E ainda ocasionalmente caem em situações em que suas dívidas tornam-se insustentáveis e precisam de ajuda externa para continuar cumprindo com suas obrigações pelos serviços da dívida.

Quando empresas privadas (ou governos subnacionais) tornam-se insolventes, existem procedimentos jurídicos legais de falência para determinar o que deve ser feito. Sem tais procedimentos, uma economia de mercado seria incapaz de funcionar.

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Em parte, isso ocorre porque os credores, de alguma forma, deixariam de estender créditos e exigiriam o pagamento ao primeiro sinal de problemas, já que os primeiros credores a serem pagos receberiam o total dos valores a eles devido, deixando menos para credores posteriores – e criando assim um incentivo para que todos os credores agissem precipitadamente, antes mesmo de o pagamento pelos serviços da dívida se tornar impossível.

Além disso, em muitos casos, o valor dos ativos da entidade com problemas, como uma preocupação constante, é maior do que seria se os bens fossem vendidos separadamente. Nestes casos, todos os credores estariam em uma situação melhor com uma redução da dívida do que diante de uma dissolução da empresa. Desta forma, as leis de falência, que protegem os credores entre si, impedem que um resultado prejudique, desnecessariamente, a todos eles.

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Entretanto, no caso de dívida soberana, não há nenhuma lei internacional vinculante que permita a falência. Embora algumas práticas rotineiras tenham surgido com o crescimento dos mercados de capitais internacionais, a prática vigente continua valendo. Tendo em conta as incertezas envolvidas e que os devedores soberanos podem repagar a dívida em moeda local simplesmente pela emissão de moeda, os credores acabam exigindo taxas de juros significativamente mais elevadas, caso os títulos não sejam emitidos de acordo com a lei e na moeda de um país desenvolvido – muitas vezes os Estados Unidos ou Reino Unido.

Quando uma nação decide que sua dívida externa é insustentável, o governo e os seus credores devem negociar entre si sobre que ação adotar. Para títulos soberanos, detidos por outras nações, o Clube de Paris, composto de países credores, desenvolveu procedimentos para lidar com a dívida de títulos soberanos em poder de outros soberanos. Mas quando os credores privados detêm dívida soberana, um novo desafio para organizá-los surge a cada episódio.

Quando a dívida é insustentável, as negociações podem ter vários resultados possíveis. Às vezes, os pagamentos do serviço da dívida são reprogramados e talvez prorrogados por um prazo maior, dando assim tempo ao país devedor para recuperar a sua capacidade de pagamento. Às vezes, os credores concordam em trocar os títulos antigos por novos, com um valor nominal inferior ou pagamentos de juros mais baixos. De qualquer forma, poucos governos se recusam totalmente a pagar.

A Argentina deixou de pagar sua dívida em 2001. Depois de vários anos difíceis, o país conseguiu negociar uma troca de títulos pendentes por títulos com um valor nominal consideravelmente mais baixo. Cerca de 93% dos credores aceitou a troca e recebeu novos títulos com valor nominal de aproximadamente um quarto do valor inicial. Após 2005, a Argentina cumpriu com o serviço da dívida sobre as novas obrigações.

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Mas alguns credores mantiveram uma posição inflexível e processaram a Argentina em Nova York (pois os títulos foram emitidos de acordo com as leis de Nova York). Os títulos argentinos (como a maioria dos outros) tinham uma cláusula chamada pari passu que comprometia o governo a tratar todos os detentores de títulos da mesma forma. Os credores resistentes (holdout creditors) alegaram que, se os novos títulos fossem atendidos na íntegra (como, de fato, foi o caso), o tratamento igualitário requeria que os credores recebessem o montante total devido a eles (incluindo não apenas os juros, mas também o principal).

A 2ª Circunscrição do Tribunal Federal de Recursos dos EUA determinou que a Argentina deveria honrar os compromissos assumidos para com credores resistentes na mesma proporção (ou seja 100%) que os detentores de novos títulos. Foi essa decisão que a Suprema Corte confirmou recentemente.

Sob a ordem do Tribunal, a Argentina não pode pagar os titulares das novas obrigações a menos que pague também os credores resistentes, e nenhuma instituição financeira dos EUA pode servir de intermediário para realizar pagamentos para a Argentina. Como resultado, a Argentina deve também pagar os credores resistentes na íntegra ou deixar de pagar os novos títulos.

Independentemente de como o impasse atual for resolvido, a decisão gera muitas dúvidas aos emitentes e aos detentores de dívida soberana. Se os credores acreditam agora que reter os títulos torna mais provável que eles receberão o valor total em uma data posterior, a reestruturação de dívida soberana e restauração do funcionamento normal de uma economia devedora serão mais difíceis.

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Desde a crise argentina, a maioria dos títulos novos foi emitida com cláusulas de ação coletiva (CAC), sob a qual os detentores de títulos são obrigados a aceitar a reestruturação se uma parcela específica (geralmente em torno de 70%) concordar com isso. Com o passar do tempo, haverá cada vez menos títulos que não conterão as cláusulas de ação coletiva. Mas estas cláusulas podem não resolver o problema inteiramente, porque uma votação seria necessária para cada emissão diferente de obrigações, e uma posição dos credores resistentes poderia ser obtida pela compra da porcentagem que bloquearia de uma emissão menor.

Também é possível que se encontre uma formulação que substitua a cláusula pari passu para futuras emissões de títulos, mas que forneça garantias suficientes para os portadores de títulos para permitir que o mercado funcione da mesma forma como acontecia até a atual decisão.

Até a crise do euro, de maneira geral, acreditava-se que os problemas de serviço da dívida soberana ocorreriam apenas em mercados emergentes e nos países menos desenvolvidos. A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a Argentina adiciona uma nova preocupação e pode aumentar bem mais o risco associado à manutenção de dívida soberana – e ao custo de sua emissão.

Anne Krueger é ex-economista chefe do Banco Mundial e ex- vice diretora executiva do Fundo Monetário Internacional, Professora de Economia Internacional na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins e Senior Fellow do Hoover Institute da Universidade de Stanford

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(Tradução: Roseli Honório)

© Project Syndicate, 2014

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