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Duas culturas

Coluna publicada em VEJA de 15 de novembro de 2017, edição 2556

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 10 nov 2017, 06h00 - Publicado em 10 nov 2017, 06h00

Como ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois pouco se fez notada. Nos últimos dias, ganhou os holofotes na condição de neoescrava. Para quem perdeu esse enredo, Luislinda pediu ao governo a gentileza de abrir-lhe uma exceção e permitir-lhe furar o teto constitucional de 33 700 reais (salário de ministro do Supremo Tribunal Federal) para os vencimentos dos funcionários públicos. Como desembargadora aposentada no Estado da Bahia, ela ganha 30 400 reais por mês; como ministra, estaria credenciada a 30 900 reais. Somando os dois — o seu desejo —, ficaria com 61 400 reais brutos, mas tem de se contentar com os impertinentes 33 700. Do salário de ministra, sobram-lhe os 3 300 reais de diferença com relação ao teto (33 700 menos 30 400). Trabalhar por semelhante quantia, argumentou Luislinda, “sem sombra de dúvida se assemelha ao trabalho escravo”. No entender do colunista, o melhor da frase é o “sem sombra de dúvida”.

Baianas como Luislinda protagonizam a exposição Mulheres de Pedra, aberta no Espaço Unibes, em São Paulo, na quarta-feira 8, com imagens captadas pelo fotógrafo e escritor Alexandre Augusto em pedreiras da Chapada Diamantina. As mulheres em questão ganham a vida transformando blocos de pedra em paralelepípedos. Equipes de quatro, a cada 1 000 paralelepípedos que produzem, apuram 220 reais ao vendê-los. Desse total, extrai-se que cada paralelepípedo é negociado a 22 centavos. Na divisão por quatro, fica cada trabalhadora com 5,5 centavos por paralelepípedo e 55 reais por 1 000 paralelepípedos. No fim do mês, cada uma costuma amealhar em torno de 800 reais – a quarta parte dos 3 300 que Luislinda alega ganhar por seu trabalho de ministra. O paralelismo pode parecer vulgar, mas como esquecer o país em que vivemos? O Brasil real bate à porta de Luislinda.

A repercussão negativa fez com que a ministra recuasse de suas pretensões, mas antes insistiu em justificá-las. “Eu, como aposentada, podia vestir qualquer roupa, podia calçar uma sandália havaiana e sair pela rua”, disse, em entrevista, à Rádio Gaúcha de Porto Alegre. “Mas, como ministra de Estado, não me permito andar dessa forma. Eu tenho representatividade.” Disse ainda: “Como eu vou comer, como vou beber, como vou calçar?”. No entender do colunista, o melhor é o “como eu vou calçar?”. Remete à situação dos ex-escravos, tal qual descrita pelo viajante francês L.A. Gaffre, que visitou o Brasil em 1911 e impressionou-se com os vistosos sapatos dos negros. Escreveu ele que, decretada a abolição, se deu uma corrida às lojas de calçados. “A escravidão não lhes dava o direito de se calçar, e lhes parecia que agora se equiparariam aos senhores usando as mesmas botas e borzeguins.”

Entre as fotos, muito bonitas, ricas de detalhes, de Alexandre Augusto, uma mostra apenas os pés descalços de uma das trabalhadoras. São pés inchados, dedos tortos, sulcos a denunciar antigos ferimentos, mas as unhas estão pintadas. Outra foto mostra três trabalhadoras em atividade, entre um mar de pedras. Elas têm a cabeça coberta de panos, em rústica versão dos véus árabes, para a proteção contra o sol. Uma tem o braço direito levantado, a talhadeira na mão, prestes a dar o golpe na pedra, e deixa ver a unha do polegar também pintada. São mulheres. O esmalte dá o ar de sua graça, contra a lógica da pedra, da dureza e da pobreza, e berra aos céus que se trata de mulheres. Aos homens, quase sempre das mesmas famílias, cabe atacar a pedreira bruta e espicaçá-la em blocos, repassando-os às mulheres em seguida.

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Luislinda tem um ponto a seu favor: o teto constitucional para o salário dos funcionários públicos é uma peneira. Campeão na prática de furá-lo é o Poder Judiciário. Em julho, 84 juízes de Mato Grosso receberam mais de 100 000 reais, sendo que a um deles coube 503 000. No mesmo mês, segundo cálculos do jornal O Estado de S. Paulo, 98% dos juízes de Minas Gerais superaram o teto. Vinda da cultura do Judiciário, Luislinda achou que valia arriscar; comparadas às práticas dos colegas da toga, suas pretensões, de 61 000, até que se figuram humildes. Vindas de uma cultura da pedra que atravessa gerações, as mulheres da Chapada Diamantina trabalham de sol a sol, seis dias por semana. O fotógrafo Alexandre Augusto afirma ter visto nelas dignidade e resistência.

Coluna publicada em VEJA de 15 de novembro de 2017, edição nº 2556

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