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A ignorância vai às urnas

Autor do provocativo 'Democracy and Political Ignorance', o professor de direito Ilya Somin alerta para a crescente ameaça da desinformação profunda e generalizada do eleitorado e defende que a melhor forma de contê-la é tornar o governo enxuto e descentralizado

Por Da Redação 6 mar 2016, 10h03

A sabedoria das urnas é um mito. Na média, o eleitorado desconhece aspectos básicos da administração pública e articula mal as poucas informações que possui sobre os partidos e candidatos. Segundo o professor de direito Ilya Somin, da Universidade George Mason, na Virginia (EUA), a baixa cultura política é um dado incontornável das democracias e é particularmente perigosa onde o estado é inchado, e o poder central, desmedido. Nascido na extinta União Soviética e naturalizado americano, o cientista político alerta contra o avanço de populistas e demagogos como, diz, o pré-candidato republicano Donald Trump, e pondera que um governo enxuto e descentralizado, onde as pessoas possam optar entre diferentes jurisdições para viver, é a melhor maneira de limitar os efeitos deletérios do analfabetismo político. Estes são os temas de seu provocativo Democracy and Political Ignorance. Lançado em 2013, o livro entrou logo no radar das ciências políticas, e o interesse por ele só tem aumentado com o desenrolar da corrida eleitora à Casa Branca – e a surpreendeente arrancada de Trump. Em junho, a obra volta às prateleiras em edição ampliada.

Ilya Somin, da Universidade George Mason, na Virginia (EUA)
Ilya Somin, da Universidade George Mason, na Virginia (EUA) (VEJA)

O que há de errado com o eleitor? A ignorância da maioria dos eleitores é profunda e generalizada, o que pode ser chocante para quem não tem familiaridade com o tema. Eles até têm boas intenções e na maioria das vezes querem realmente fazer o que é certo. Infelizmente, eleitor médio sabe muito pouco sobre políticas públicas. Além disso, não faz bom uso dos poucos dados de que dispõe. Em geral, supervaloriza qualquer informação que reforce seus pontos de vista pré-existentes e despreza qualquer coisa no sentido contrário.

Com o passar do tempo, o eleitor não pode se tornar mais consciente? É improvável que isso aconteça no futuro próximo. O conhecimento dos eleitores aumentou pouco ou nada desde o início das pesquisas em massa, nos anos 1930, apesar do avanço do ensino e da crescente disponibilidade de informações, graças a novas tecnologias, como a internet. Acontece que a ignorância não é simples consequência de estupidez. Mesmo pessoas inteligentes e perfeitamente racionais podem decidir esforçar-se pouco ou nada para adquirir conhecimentos políticos.

A democracia demanda eleitores mais bem informados? Sim, o que é preocupante. Se as pessoas fossem mais bem informadas, a qualidade das políticas públicas seria maior. Pessoas bem informadas apoiam propostas melhores e se saem melhor também na hora de monitorar o governo. Como os partidos sabem que sua audiência é ignorante, acabam desenvolvendo plataformas sob medida para atrair o eleitor mal informado.

Se os eleitores são tão ignorantes, como os países democráticos conseguiram se desenvolver ao longo da história? Em primeiro lugar, ditaduras se saem sempre muito, muito mal, então as democracias terão de fato uma performance melhor ao longo do tempo, mas não necessariamente uma boa performance. Em segundo lugar, muitos países mantiveram por muito tempo limitado o alcance do estado, deixando que muitas questões fossem tratadas apenas na esfera privada. Se o estado é pequeno, os perigos da ignorância política são menores. Já em estados grandes e complexos, a baixa cultura política é um problema maior. Além disso, no passado, muitos países mantiveram a administração descentralizada, delegando mais poder aos governos locais, o que dava mais oportunidades para que as pessoas ‘votassem com os pés’, ou seja, escolhessem sob qual jurisdição viver.

Quais as vantagens de ‘votar com o pés’? Para uma pessoa comum, o único incentivo para se preocupar com a política é o de votar direito. Mas a chance de que o seu voto faça alguma diferença é desprezível: 1 em 60 milhões na campanha presidencial americana. Por isso, muitas pessoas não adquirem informações necessárias para fazer sua escolha nas urnas. Elas intuem que não vale a pena o esforço. Já quando se faz uma escolha na esfera privada, as coisas mudam bastante. Quando se ‘vota com os pés’, tendemos a nos informar melhor. Ao decidir onde morar, você sabe que está fazendo uma escolha que fará muita diferença, e você então toma mais cuidados.

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O preço de fazer isso não é alto demais? Os custos de uma mudança são um problema real, mas não tão altos a ponto de impedir o voto com os pés em grande escala. Mais de 40% dos norte-americanos fizeram pelo menos uma mudança entre estados em suas vidas, e muitos mais têm feito deslocamentos mais curtas. Além disso, há muitas situações em que se pode ‘votar com os pés’ na esfera privada, sem de fato mudar de endereço. Por exemplo, os pais podem mudar seus filhos de uma escola privada para outra, sem ter que mudar seu local de residência. Da mesma forma, podemos escolher a igreja que frequentamos e os produtos que compramos. Antes de comprar um carro, por exemplo, você também passa muito tempo pensando. Não é porque um carro é mais importante do que o presidente do país, mas sim porque você sabe que, no caso do carro, a sua decisão fará toda a diferença. Eu gostaria que pudéssemos fazer mais decisões com ‘os pés’ e menos escolhas nas urnas.

O senhor já ‘votou com os pés’? Meus pais e eu deixamos a União Soviética em 1979. Eu tinha cinco anos de idade. Eles fizeram essa escolha porque sabiam que havia muito mais liberdade e oportunidade no Ocidente do que na URSS. Seja qual for o sucesso que tive em minha vida, ele em grande parte é o resultado dessa decisão. De minha parte, fiz algumas decisões menos dramáticas desde então. Por exemplo, escolhi viver na Virginia porque gosto de algumas das políticas públicas daqui, mais do que outras jurisdições, como Maryland ou Distrito de Columbia, que também ficam perto do meu local de trabalho.

Adianta usar essa estratégia quando se trata de questões complexas como o aquecimento global? Há, de fato, questões grandes demais para o voto com os pés. Mas eu acredito que se o governo não cuidasse de tantos assuntos, poderia tratar melhor dos temas verdadeiramente complexas, como as mudanças climáticas, que não podem ser enfrentadas nem pelos poderes locais nem na esfera privada. Dessa forma, o eleitor que é relativamente ignorante teria menos assuntos para acompanhar. Não sou da opinião que todo poder possa ser descentralizado e toda decisão feita na esfera privada. Mas acho, sim, que muitas decisões podem ser resolvidas ‘com os pés’. Se fizermos isso, poderemos lidar melhor com as grandes questões que devem ser tratadas por um governo nacional ou mesmo em cooperação internacional. O controle democrático do governo funciona melhor quando há menos governo para controlar.

É realista esperar por essas mudanças? Sim. Nos últimos 25 anos, alguns países obtiveram avanços, como Canadá, Irlanda, Nova Zelândia, Taiwan e Singapura. Eu acho que é bem possível tornar o estado menor e o poder descentralizado. Não estou dizendo que é fácil ou que isso possa ser feito rapidamente. Mas pode ser feito, sim, de modo gradual. Por exemplo. Há 100, 200 anos, a maioria das pessoas no Ocidente acreditava que o governo deveria promover a religião. Ao longo do tempo, cada vez mais pessoas perceberam que os governos desempenham mal esse papel, e com isso desenvolvemos a ideia de separar a Igreja do estado. Minha esperança é a de que a gente perceba que há muitas outras questões que o estado não deveria cuidar.

A ignorância política não pode ser driblada por processos alternativos à democracia representativa? Democracia direta, por meio de referendos, pode ser útil às vezes, mas passa pelos mesmo problemas que um eleição comum. Já a democracia deliberativa, quando eleitores discutem questões em conselhos e tomam decisões, exige um nível ainda mais alto de conhecimento. Se não temos a cultura política à altura da democracia representativa, estamos ainda mais longe de alcançar o que a democracia deliberativa requer. Dadas as condições do mundo moderno, é simplesmente irreal. A dura realidade é que não podemos contar com o aumento do conhecimento político: teremos de fazer o melhor com o eleitorado que temos.

A ignorância política tem alguma coisa a ver com a ascensão de celebridades na política, como Donald Trump? Certamente. Trump tira seu apoio da parcela mais ignorante do eleitorado. São pessoas de baixo nível educacional e que não acompanham política. Mas Trump não está sozinho. Outras celebridades fazem o mesmo. Trump explora a ignorância do eleitorado em maior medida, mas não é o único a fazê-lo.

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A revista ‘The Economist’ colocou este ano os Estados Unidos como o 20º país do restrito grupo de 20 ‘democracias plenas’. A democracia americana está em risco? É extremamente improvável que os Estados Unidos um dia se tornem um país autoritário. A opinião pública tem uma tremenda influência sobre o governo. O risco real para os Estados Unidos e também para a Europa não é a da democracia desaparecer mas se tornar cada vez mais disfuncional. Isso porque a ignorância política é um sério problema em um mundo com tantas funções complicadas. Além disso, a crise econômica dos últimos anos oferece mais oportunidades para demagogos como Trump e outros exploraram a ignorância política. Isso porque quando as pessoas estão sofrendo, frustradas com o status quo, é muito fácil apelar às emoções com soluções simplistas.

É tão errado confiar na emoção na hora de decidir o voto? Na maioria das vezes, é muito perigoso tomar decisões políticas com base nas emoções. Do ponto de vista genético, o ser humano não é muito diferente hoje do que era 20, 30 mil anos atrás. Nossas emoções remontam à idade da pedra. Elas podem ser muito boas para interações cara a cara, em grupos pouco numerosos, mas não são bons guias para questões sociais de maior escala, como política econômica, questões ambientais, guerra e paz. Para questões complexas como essas, frequentemente a resposta certa vai contra nossa intuição. Nós somos naturalmente desconfiados de estrangeiros, e por isso tendemos a desconfiar também do livre comércio internacional. A maioria dos economistas, no entanto, dirá que o comércio internacional é extremamente benéfico. E há muitos outros casos em que emoções que faziam sentido para pequenos grupos na idade de pedra revelam-se enganosas quando tratamos de questões complexas do mundo moderno.

Os teóricos da democracia puseram confiança demais no eleitor? Muitos deles sim, com certeza. Mas acho que mais e mais pessoas estão começando a perceber que a ignorância política é um problema grave, muito difícil de resolver, que deve nos fazer desconfiar da intervenção do governo em qualquer situação.

Se o problema já é sério para países de longa tradição democrática, o que se pode dizer de democracias mais jovens, como a brasileira? Não estudei os dados sobre o caso brasileiro, mas, como regra geral, a ignorância política está correlacionada à educação, e o voto obrigatório tende a agravar o problema, uma vez que aqueles que votam por opção tendem a ter mais conhecimento do que os votam por obrigação. Não digo que o voto obrigatório seja um desastre completo, mas ele acentua o problema.

O que há de novo na segunda edição do seu livro? Além de incluir dados de eleições mais recentes, eu estendo a discussão sobre as vantagens de votar com os pés. Explico que, quando se vota com os pés, não apenas lidamos melhor com as informações, mas também nos saímos melhor na pesquisa de novos dados. Eu comento também o que acadêmicos americanos têm chamado de ‘big sort’ (algo como a ‘grande segmentação’). Teme-se que, encorajando o voto com os pés, todas as pessoas de esquerda iriam se mudar para um mesmo local, e todas as pessoas de direita para outro. No livro eu defendo que esse cenário extremo é improvável, mas que, caso ocorra em algum grau, não é necessariamente uma coisa ruim.

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