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Os segredos do governo oriental alemão na Guerra Fria

Saiba como o Stasi, serviço de inteligência da República Democrática Alemã, passou de 1950 a 1989 punindo os opositores ao regime socialista soviético

Por Cecília Araújo, de Berlim
13 ago 2011, 00h48

Era uma segunda-feira de 1953 quando o artista plástico H.R.* voltava para casa após um dia de trabalho. Morador de Dresden – capital da Saxonia, na Alemanha -, foi abordado por uma autoridade da República Democrática Alemã (RDA) – governo então vigente – enquanto atravessava uma rua da vizinhança. O funcionário dizia querer interrogá-lo rapidamente sobre um acidente que teria ocorrido ali no dia anterior. Sem entender muito bem a importância de tal depoimento, H.R. foi levado a um prédio administrativo do Stasi (Ministério para a Segurança do Estado, que atuava como serviço secreto e de inteligência). Chegando ao local, foi preso imediatamente, sem fazer ideia do motivo.

H.R. nunca foi muito fã do regime, era verdade. Mas nunca havia chegado nem perto de cometer qualquer tipo de crime. Depois de ser fotografado em uma sala especial, foi trancado em uma cela individual, de aproximadamente 20 metros quadrados. Recebeu, então, um novo nome – o que era como perder sua identidade – e a ordem de que deveria dormir todas as noites em uma única e pré-determinada posição, bastante desconfortável. De madrugada, seguranças vigiavam seu sono aguardando qualquer deslize para castigá-lo. Com isso, ele mal conseguia dormir, o que dava início a uma série cruel e interminável de torturas psicológicas.

Coação – A estratégia do Stasi não era usar agressão física. Afinal, seus funcionários não precisavam colocar uma arma na cabeça de ninguém para ameaçar – preferiam maneiras bem mais discretas de torturas. Apenas um terço dos prisioneiros da RDA eram nazistas ou verdadeiros criminosos. A grande maioria era presa por motivos políticos – mas pagavam o mesmo preço dos outros. Muitos dos considerados “perigosos” tinham sua carreira arruinada sem qualquer justificativa. H.R. soube do caso de uma amiga, inteligentíssima, que acabou internada em uma clínica psiquiátrica. Mas a “insanidade” não passava de uma armação do Stasi, articulada no intuito de abafar a suposta ameaça política que aquela mulher representava. Informantes não-oficiais entraram em sua casa e trocaram as coisas de lugar, ao longo de semanas. Quando ela ia se queixar aos vizinhos, era taxada de doida.

A invasão de residências por agentes do serviço secreto sem qualquer pudor era comum. Câmeras de foto ou vídeo e gravadores eram escondidos em canetas, óculos, relógios, ou até em árvores e carros, para acompanhar a movimentação dos “alvos” 24 horas por dia. O Stasi também tinha a ajuda de informantes não-oficiais, que representavam cerca de 1% da população de 17 milhões de habitantes da RDA. Leia-se familiares ou amigos, escolhidos em razão da proximidade que tinham com os “suspeitos” de atuarem contra o regime. Mas havia também quem se candidatasse por iniciativa própria, já que compartilhavam da mesma ideologia socialista. Geralmente, esses delatores recebiam recompensas, em dinheiro ou oportunidades de trabalho. Só em 1989, 174.000 pessoas mantinham acordo assinado com o serviço secreto – que se dava o amplo direito de observar, prender e questionar quem quer que fosse.

H.R. descobriu que seu próprio irmão era quem fornecia as informações mais íntimas sobre ele: conta bancária, fotos de familiares, objetos pessoais, além de detalhes de sua intimidade – até a amante mantida por dois anos no passado foi descoberta. Os agentes também desviavam cartas com conteúdos pessoais. Em uma delas, achada mais tarde, uma amiga de H.R. comentava sobre os filhos do artista e seus problemas com o trabalho. E essa foi apenas uma das milhares de correspondências que nunca chegaram ao destinatário.

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No total, há 111 quilômetros de documentos do Stasi abertos para pesquisa pessoal em toda a Alemanha
No total, há 111 quilômetros de documentos do Stasi abertos para pesquisa pessoal em toda a Alemanha (VEJA)

Revolta – Somente três anos depois da morte de Stalin (1953), em 1956, alguns presos começaram de fato a ganhar a liberdade – entre eles, H.R., que decidiu se mudar para a parte ocidental do país. Não lhe era permitido falar nada a ninguém sobre a prisão, nem retornar à RDA. Essas pessoas só puderam entender o que de fato ocorreu quando viram seus próprios registros. Em outubro de 1989, cerca de 5.000 pessoas invadiram os arquivos do Stasi em Dresden – algo parecido também ocorreu em outras cidades da RDA, especialmente em Berlim. Economicamente, a RDA já não tinha mais condições de conter as reivindicações dos cidadãos. E, percebendo a insatisfação generalizada, o serviço secreto já começava a triturar alguns documentos mais relevantes quando os rebeldes entraram no prédio administrativo. Mesmo assim, grande parte dos arquivos foi salva e poderia ser aberta exclusivamente para pesquisas individuais: cada cidadão poderia ter acesso apenas a suas próprias informações.

Dica de leitura

Capa do livro 'The File'
Capa do livro ‘The File’ (VEJA)
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‘The File’

Quando era um jovem estudante de jornalismo e vivia na Alemanha Oriental, o professor de Estudos Europeus da Universidade de Oxford Timothy Garton Ash foi alvo da vigilância invasiva do Stasi. No início da década de 1990, com o fim da RDA, ele começou a investigar as informações que o regime soviético havia apurado sobre sua própria vida. O resultado está neste livro (Editora Random House, 1997, 272 páginas).

No total, há hoje 111 quilômetros de documentos do tipo em toda a Alemanha. Daqueles que foram triturados, alguns já puderam ser resgatados. Mas cerca de 1.000 grandes sacos com papéis picados em Dresden – 15.500 em todo o país – ainda esperam para serem digitalizados e remontados, como um trabalhoso quebra-cabeça. Até agora, mais de 80% dos documentos já podem ser acessados. Com o fim do Stasi, uma organização passou a controlar o acesso aos arquivos, contando com doações e a ajuda de entidades públicas – seu presidente é eleito pelo Parlamento alemão. H.R. fez questão de voltar a Dresden e se voluntariar como membro da instituição. Sua função não é investigar ou julgar, mas reparar, ensinar e colocar à disposição o que acredita ser de direito de todos os alemães.

* H.R. é um personagem fictício, mas retrata histórias reais de milhares de pessoas que viveram as consequências da divisão da Alemanha entre Ocidente e Oriente. As informações foram repassadas a VEJA por dois guias: Nick Pruditsch, da prisão do Stasi, e Frau John Marx, do prédio onde estão hoje abrigados os arquivos pessoais dos habitantes de Dresden durante a RDA.

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