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Califórnia delibera sobre a liberação da maconha

Estado que já autoriza o emprego medicinal da droga pode agora estender liberdade a 4 milhões de usuários ditos “recreativos”

Por Fábio M. Barreto, de Los Angeles
2 nov 2010, 11h37

Segundo o Departamento de saúde Pública da Califórnia, 47.828 consomem maconha como pacientes num estado que desde 1996 autoriza o uso da droga com fins medicinais

Munida das duas prescrições necessárias para a compra, S.F.K. entra no Herbal Remedies Caregivers, um dos 143 pot dispensers, as lojas especializadas na venda de maconha em Los Angeles. Sem as receitas – normalmente prescritas a pacientes vítimas de câncer, artrite, depressão, dores crônicas, AIDS, deficiência motora e insônia -, não é possível nem mesmo entrar na pequena sala comercial de aspecto hermético, onde dois funcionários trabalham, entregando o produto e sugerindo equipamentos para consumo, sejam eles vaporizadores ou os chamados bongs, tubos de vidro ou plástico utilizados para filtrar a fumaça e permitir a absorção da droga.

Aos 57 anos, S.F.K está em seu terceiro mês de prescrição da Cannabis. Ela sofre de Síndrome das Pernas Inquietas, doença debilitante causada pela deficiência de dopamina no cérebro e, em seu caso, indiferente aos tratamentos com remédios convencionais. Há um ano ela perdeu o emprego numa revenda de carros, por não conseguir ficar em pé por muito tempo e transmitir a segurança que considera fundamental ao seu trabalho. S.F.K. procurou o tratamento por sugestão de amigos. Gastou cerca de 1000 dólares em exames e consultas a cinco especialistas. Também comprou um vaporizador para inalar a maconha. “Nunca fumei e não pretendo começar agora”, diz. Segundo S.F.K., desde o início do tratamento suas dores diminuíram, assim como os espasmos e movimentos involuntários. “A primeira noite de uso foi a melhor da minha vida, por causa do alívio nas dores”, diz ela. “Sei que não encontrei a cura, mas, no meu caso, a Cannabis combateu os sintomas melhor do que a alopatia.”

Desde 1996 a Califórnia autoriza o uso da maconha com fins medicinais. S.F.K. é uma de 47.828 pacientes que, segundo o Departamento de Saúde Pública do estado, consomem a maconha em tratamentos. Segundo as estatísticas da Administração Federal de Abuso de Substâncias e Saúde Mental, contudo, há pelo menos 4 milhões de pessoas que usam a droga ao menos uma vez por ano na Califórnia. Em tese, são esses usuários ditos “recreativos” que podem se beneficiar da aprovação da Proposition 19 nesta terça-feira – uma lei estadual que, levada a votação popular, libera o cultivo de maconha em residências ou estufas coletivas, em área máxima de 2,4 metros quadrados por pessoa, e ainda descriminaliza o porte de até 28 gramas da erva.

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Seja ou não aprovada, a Proposition 19 nem de longe foi objeto de discussão aprofundada nos meses que antecederam a votação. A imprensa escrita, especialmente o jornal Los Angeles Times e a revista LA Weekly, dedicaram diversas reportagens ao assunto – mas foram os únicos bastiões verdadeiros da informação. Na ida às urnas, os californianos também deverão escolher seu novo governador e representantes para o senado e o congresso. Nenhum dos políticos mais conhecidos incluiu o tema em sua plataforma de campanha. Na televisão, somente um pequeno anúncio institucional foi veiculado. Coube a programas humorísticos a abordagem mais direta do assunto: no desenho animado Family Guy, o cão falante Brian defendeu a legalização da maconha, da mesma forma que o comediante e apresentador Bill Maher em seu programa na TV paga – ele inclusive permitiu que o ator Zack Galafinakis acendesse um baseado ao vivo, em seu palco. Com isso, os eleitores deverão decidir mais com base na ideologia do que numa avaliação objetiva das conseqüências da liberação do plantio e comércio da droga.

Numa análise recente, o Instituto Cato estimou que a Califórnia gaste cerca de 960 milhões de dólares por ano no combate ao plantio e comércio ilegal de maconha. Aplicando à erva a mesma tributação dos cigarros, o mesmo estudo estimou em 332 milhões de dólares a receita direta e indireta da legalização. São contas como essa que levam os militantes da Yes on 19 – grupo de ativistas responsável pela proposta – a sugerir que a aprovação da medida poderia render mais de 1 bilhão de dólares aos cofres públicos, entre novas receitas e gastos evitados. O fato, porém, é que a Califórnia ainda precisaria estudar e criar legislações específicas para regular o plantio e a taxação da maconha e por isso, a esta altura, estimativas são apenas estimativas – nenhuma delas oficial.

O impacto da legalização sobre o tráfico também é incerto. Nesse quesito, há críticos veementes da Proposition 19 dentro e fora dos Estados Unidos. Há duas semanas, o presidente mexicano Felipe Calderon considerou a proposta “hipócrita” e capaz de incentivar o uso de drogas entre os americanos. “É triste ver os Estados Unidos exigindo que o México controle o tráfico, enquanto permite o uso comercial de uma droga”, disse. A Califórnia consome, hoje, aproximadamente 14% de toda a maconha que circula por ano nos Estados Unidos. Mesmo que toda essa demanda passasse a ser atedida por produtores locais, ainda sobraria um grande volume de droga ilegal a ser contrabandeada do México para outros estados – os traficantes mexicanos são os principais fornecedores do mercado americano.

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Muitas autoridades americanas compartilham do ponto de vista de Calderon. Elas temem, aliás, que plantadores da Califórnia, amparados por uma legislação permissiva, acabem disputando com os cartéis mexicanos uma fatia maior do tráfico nos Estados Unidos. Atualmente, sabe-se que lugares como Humboldt County, ao norte de São Francisco, já são paraísos para o cultivo da droga. Lá, jovens desempregados, com média de 22 anos de idade, vindos de diversas partes do país, reúnem-se para fazer fortuna com plantações subterrâneas e construções projetadas para ocultar as plantas da parca vigilância aérea da região.

Para muitos pais preocupados, o fato de a Proposition 19 só liberar o consumo para maiores de 21 anos não serve de alívio. Segundo eles, crianças e adolescentes passarão a ser alvo de um assédio ainda mais pernicioso do que já eram, por conta da facilidade de acesso à droga e da redução no preço. Esse é um argumento que também não foi devidamente respondido no período de campanha eleitoral.

A verdade é que as discussões sobre a legalização da maconha têm aspectos de saúde e segurança pública que mal foram arranhados no debate californiano. É provável que boa parte dos eleitores que hoje forem votar tome uma decisão apressada, diante da urna, com base em sentimentos ou crenças já arraigados – sejam eles libertários (“os indivíduos devem poder decidir sobre o consumo de drogas”) ou conservadores (que levam em conta, por exemplo, interditos religiosos ou morais ao uso de entorpecentes). Em outras palavras, é provável que tomem uma decisão envolta – ao menos figurativamente – numa nuvem de fumaça.

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