Marcos, o goleiro do penta, ganha biografia; leia capítulo
Bem documentado e com fotos inéditas, livro do jornalista Celso de Campos Jr. mostra toda a trajetória do ídolo maior do Palmeiras nas últimas décadas
Ele ficou conhecido como “São Marcos” por fechar o gol em um jogo contra o Corinthians – episódio recuperado e recontado em detalhes logo no início do livro. O que Marcos jamais fechou foi a boca
Depois de quase duas décadas de serviços prestados ao Palmeiras, Marcos começa a sentir na pele o tratamento que os clubes costumam dar a seus heróis quando se aproxima a hora de os craques pendurarem as chuteiras. A sorte dos fãs do goleiro pentacampeão é que, se a diretoria não dá o devido respeito ao ídolo, outros o fazem – e com competência seguramente maior do que a dos cartolas do Parque Antarctica. Chega ao mercado nesta semana o livro São Marcos de Palestra Itália (Realejo Livros, 304 pág, 49,90 reais), do jornalista e escritor paulistano Celso de Campos Jr. Com pesquisa meticulosa e tom descontraído – seguindo a trilha de seu elogiado trabalho anterior, a biografia de Adoniran Barbosa -, Campos Jr. recupera toda a trajetória profissional do goleiro, desde os causos do início da carreira (reza a lenda que Marcos teria sido trocado por doze pares de chuteiras) até os dilemas pré-aposentadoria.
Dono de títulos importantes, como a Libertadores de 1999, pelo Palmeiras, e a Copa do Mundo de 2002, com a seleção brasileira, Marcos ficou conhecido como “São Marcos” por fechar o gol em um jogo contra o Corinthians – episódio recuperado e recontado em detalhes logo no início do livro. O que Marcos jamais fechou foi a boca. A biografia traz inúmeras pérolas soltadas pelo goleiro em sua carreira, como o desabafo ao saber que jogaria no rudimentar estádio Gigante do Agreste, em Garanhuns, em 2003. “Vamos ser obrigados a jogar num pasto, com iluminação de vaga-lume”, disparou. O livro é ilustrado por mais de uma centena de fotografias, muitas delas inéditas, fruto de uma extensa pesquisa iconográfica. Uma das fotos mostra o goleiro no banco de reservas em um clássico contra o Corinthians, em 1992, na primeira vez em que foi relacionado para a equipe profissional do Palmeiras, pelo técnico Nelsinho Baptista. Bem documentado, com texto atraente e apresentação gráfica impecável, São Marcos de Palestra Itália destaca-se como um ponto fora da curva no cenário da literatura esportiva do país, ainda às voltas com edições tão amadoras quanto os cartolas que dirigem o futebol brasileiro.
Na final de 2002, o duelo com o alemão Kahn
Com exclusividade no site de VEJA, leia um trecho da biografia do goleiro Marcos
Defensores das metas dos finalistas, Marcos e Oliver Kahn só tinham mesmo em comum o número 1 na camisa. De resto, nada mais parecia os aproximar. Dentro de campo, o brasileiro preferia a serenidade, o coletivo e a discrição; o alemão cultivava a agressividade, o personalismo e a cólera como forma de motivação. Um já estava praticamente careca, enquanto o outro ostentava uma viçosa juba amarela. São Marcos era religioso e carregava consigo escapulários com imagens sagradas; King Kahn, o cético gorila albino, mordeu a mão da última pessoa que tentou lhe empurrar um amuleto do gênero. Apesar das diferenças de estilo, o desempenho dos dois no torneio era igualmente sólido – ambos estavam entre os 33 jogadores que o Grupo de Estudos Técnicos da Fifa, antes da semifinal, selecionou como os melhores da competição.
Mas enquanto Felipão tinha Rivaldo, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Roberto Carlos e Cafu – também na relação da Fifa -, o germânico Rudi Völler, sem poder contar com o suspenso Michael Ballack, apoiava-se em Kahn para liderar a batalha contra os canarinhos. “Ele tem a importância que atletas de linha têm para outras seleções, como Zidane para a França e Rivaldo e Ronaldo para o Brasil”, declarou o treinador, cuja equipe surpreendeu até mesmo os conterrâneos ao registrar uma até então irrepreensível campanha de cinco vitórias e um empate. Não por coincidência, com apenas um gol sofrido nos seis jogos, Oliver Kahn era o principal favorito para ficar com o troféu Yashin, oferecido pela Fifa ao melhor arqueiro da competição. Marcos, vazado em quatro oportunidades, garantia que não ligava para o prêmio. Perguntado sobre a honraria, ao final do penúltimo treinamento para a final, disparou: “Não vim aqui para ser o melhor goleiro, e sim para não ser o pior. O que eu quero é ser campeão.”
Maiores vencedores da história das Copas até então, Brasil, com quatro títulos, e Alemanha, três, jamais haviam se enfrentado em um Mundial. Quis o destino que o primeiro duelo acontecesse justamente em uma finalíssima, para uma audiência estimada de 1,5 bilhão de pessoas, ou 25% da população do planeta – sonho de qualquer jogador, mas, ao mesmo tempo, pesadelo para quem não queria repetir a fábula de Barbosa. “A posição de goleiro é muito difícil e ingrata. Ainda podemos não vencer a final e a responsabilidade da derrota cair toda nas minhas costas. Mas Deus tem me ajudado até agora”, confessou ao Diário de S. Paulo de 27 de junho. Especialista em penalidades, o palmeirense jurava que torcia para a decisão não chegar a esse ponto. “Vamos tentar vencer o jogo no tempo normal. Espero não ir para os pênaltis. É muita emoção. Desde o momento em que fui convocado, mandei comprar um monte de calmante para meus pais. Eles sofrem muito. Não é fácil ser pai e mãe do goleiro da Seleção.”
Estádio Internacional, Yokohama, 30 de junho de 2002. A hora da verdade para a Família Scolari, representada em campo por Marcos; Lúcio, Edmílson e Roque Júnior; Cafu, Gilberto Silva, Kléberson, Ronaldinho Gaúcho e Roberto Carlos; Rivaldo e Ronaldo. O primeiro tempo pertenceu todo ao Brasil, que pressionava a Alemanha no campo de ataque. Ronaldo desperdiçou boas chances aos 18 e aos 29 minutos, mas foi Kléberson quem deu o maior susto em Kahn: faltando um minuto para o fim do primeiro tempo, o meia chutou colocado de fora da área e a bola explodiu no travessão. No último lance antes do apito do árbitro italiano Pierluigi Collina, o grito de gol ficou entalado na garganta, com a bomba de Ronaldo da marca dos 11 metros defendida pela perna esquerda do gigante alemão. Na volta do intervalo, os germânicos resolvem aparecer para o jogo. Logo aos dois minutos, Edmílson desvia para escanteio uma perigosa cabeçada de Jeremies. E, aos três, vem a maior intervenção do goleiro na partida – e, de acordo com o próprio, em toda a Copa.
Lúcio faz falta em Schneider, a cerca de 30 metros da meta brasileira. Neuville toma longa distância para a cobrança. Marcos arma o muro com Edmílson, Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho. O camisa 7 alemão pega de três dedos e injeta muito veneno no disparo. Logo após passar ao lado de Edmílson, primeiro homem da barreira, a bola faz uma curva vertiginosa e muda completamente de trajetória, viajando para o canto esquerdo do goleiro. Voador, o palmeirense estica-se inteiro para fazer a ponte. Com o corpo na horizontal, praticamente paralelo ao chão, alcança a redonda com a pontinha dos dedos. O desvio é leve, mas suficiente para empurrá‑la para a trave. Neuville, com as mãos na cabeça, se desespera com o gol que Marcos lhe tirou. “O jogador cobrou com uma curva danada. A bola saiu do meio do gol para o canto. Exigiu todo o meu reflexo. Consegui espalmar com muito sacrifício a bola para a trave”, declarou ao Jornal da Tarde.
Depois do sufoco, o Brasil conseguiu equilibrar as ações. O prélio estava ainda completamente indefinido quando, aos 22 minutos, Ronaldo roubou a bola de Hamann e rolou para Rivaldo. Com sua rápida canhota, o meia dominou, ajeitou e chutou forte, rasante, mas no centro do gol, exatamente onde estava Oliver Kahn. Só que o alemão, quem diria, bateu roupa – a pelota escapou do seu peito e sobrou para Ronaldo, que, da entrada da pequena área, só empurrou para as redes. 1 a 0. Doze minutos depois, aos 34, a Seleção ampliou: Kléberson recebeu de Cafu na divisória do campo, arrancou pela direita, cortou para o meio e tocou para Rivaldo na meia-lua. O genial camisa 10 apenas abriu as pernas e deixou a bola passar, matando o zagueiro Linke e oferecendo caminho livre para Ronaldo, que não perdoou. Chute preciso no canto esquerdo de Kahn, 2 a 0.
Faltando menos de dez minutos para o final da partida, com toda a nação já celebrando, Marcos ainda fez uma defesaça no chute de virada à queima-roupa de Bierhoff, da marca do pênalti, um arremate com endereço certo que poderia ter colocado a Alemanha de volta no jogo – se tivesse entrado. Como o “se” não joga, a comemoração foi definitiva: Brasil, pentacampeão mundial de futebol. “Queria dizer a todos os brasileiros que fiquem com a imagem vencedora dessa seleção, com o carinho, o amor, a amizade. Não sou político, mas é assim que a gente vai fazer crescer o Brasil”, discursou Luiz Felipe Scolari na Folha de S.Paulo de 1º de julho. Marcos, por sua vez, terminava a Copa do Mundo com a sensação de dever cumprido – e, claro, aliviado por não ter se tornado o Barbosa de 2002, como tanto temia. “Foram 45 dias em que tive até pesadelo. Sonhava que estava levando gols. A cada jogo vencido, era uma etapa que passava, mas a responsabilidade aumentava. Sabia que não podia falhar de jeito nenhum para não ficar marcado, porque isso não iria prejudicar só a mim, mas toda minha família. Se eu erro, o que iriam fazer com meu filho na escola? No fim, deu tudo certo. Mas uma coisa eu digo: ainda bem que só tem Copa do Mundo de quatro em quatro anos”, confessou ao Diário de S. Paulo.
Certamente movido por um sentimento de compaixão, o camisa 1 também tentou aliviar a barra de Oliver Kahn, que, na ótica do palmeirense, teria de conviver dali para a frente com a mesma sombra reservada ao arqueiro de 1950. “Não acho que o Kahn falhou. Não deu sorte, porque a bola lhe escapou dos braços. Mas ele ficará marcado agora pelo resto da vida por esse lance. Essa é a vida do goleiro. Um problema e tudo que se fez para trás é esquecido”, lamentou, lembrando o que sentira na pele após a derrota para o Manchester United, também no Japão – trauma agora devidamente apagado.
Só que solidariedade tinha limite: o pentacampeão se revoltou com o fato de a Fifa ter escolhido o alemão como melhor goleiro e melhor jogador da Copa. “Achei ridículo. O Kahn fez uma Copa como eu e o goleiro de Senegal, por exemplo. O goleiro da Turquia deveria ter ganhado o prêmio. E como jogador o Ronaldo foi de longe o melhor.”
Contudo, a mãe do goleiro pedia licença ao filho herói para discordar. Diretamente de Oriente, dona Antônia aplaudiu de pé a decisão do órgão máximo do futebol. “O Kahn jogou bem, sim, pois jogou a bola no pé do Ronaldinho. Ele deu um presentão para o Brasil. Por isso, aprovo sua escolha como melhor do Mundial.”
Caso encerrado.