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São Paulo recebe Miró em toda a sua espontaneidade

O artista catalão, que flertou com importantes vanguardas e até com a poesia, recebe mostra com mais de 112 itens que exploram as fases mais importantes de sua trajetória

Por Por Beatriz Rosa
23 Maio 2015, 11h09

Ele era um homem baixo, quase careca, de feições tranquilas e olhos pequenos, mas sempre vivos. Na maioria das fotografias, aparece impecavelmente vestido. Em meio a um grupo de artistas, principalmente do círculo de poetas de que era próximo, parece um tanto deslocado com seu estilo mais conservador. Joan Miró (1893-1983) podia de fato parecer um homem convencional, mas estava distante disso. Pautado por uma espontaneidade que o opunha às regras estabelecidas, o catalão se transformou em uma das figuras mais caras às vanguardas que sacudiram a arte no início do século XX. Não à toa o pintor já foi tema de grandes exposições, inclusive no Brasil, e a partir de 24 de maio será novamente celebrado na mostra Joan Miró – A Força da Matéria, organizada pelo Instituto Tomie Ohtake, de São Paulo, em parceria com a Fundação Joan Miró, de Barcelona, detentora do maior acervo do pintor. A exposição contempla 112 itens que recuperam a obra do artista em suas principais fases. “Nesta exposição, temos obras de vários momentos, de várias mídias, de vários formatos e de dimensões diferentes que vão ajudar as pessoas a aprofundar as ideias gerais que se têm sobre o artista”, diz Paulo Miyada, arquiteto e curador do instituto.

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São 41 pinturas, 22 esculturas, vinte desenhos, 26 gravuras e três objetos que serviram de pontos de partida para parte das obras espalhadas nos 660 metros quadrados do primeiro andar do prédio localizado no início da avenida Faria Lima, no bairro de Pinheiros. As mais de cem obras reunidas na mostra, que fica em cartaz em São Paulo do dia 24 de maio até 16 de agosto, e que depois segue para Florianópolis, onde permanece de 2 de setembro a 14 de novembro, é o resultado de uma negociação que durou um ano e meio entre o instituto brasileiro, a Fundação Miró e colecionadores particulares do artista. “Já houve mostras focadas em partes específicas da obra do Miró, como a gráfica, que é muito importante. Mas a gente queria que desta vez fosse apresentado um corpo significativo de pinturas, mais abrangente”, afirma Miyada. De fato, a mostra, que está dividida em três núcleos cronológicos, revela momentos vitais do artista ao longo de sua trajetória.

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O primeiro bloco se concentra nos anos 1930 e 1940, com as influências da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra Mundial, além de traços de vanguardas como Dadaísmo e Surrealismo. O segundo apresenta a fase em que o artista ousa na experimentação da matéria e do conteúdo que servirá de inspiração para a sua obra, entre as décadas de 1950 e 60, dedicando-se à escultura. Nos anos 1970, Miró segue questionando o sentido da arte e faz uso de suportes inusitados, como madeira e lona no lugar da tradicional tela em branco. “Miró é um dos artistas que mais apostou na ideia da espontaneidade na pintura. Ele conseguiu, ao longo de décadas, atravessar movimentos e manter essa característica em sua arte”, conta o curador.

Muita gente, como aliás fazia o próprio artista, compara o seu traço ao de uma criança. Para Miyada, isso equivale a dizer que Miró possui um traço livre, independente das normas do que seria a “bela pintura”. “Por mais que ele, como pintor, tivesse noções muito precisas sobre composição, equilíbrio e harmonia dentro da pintura, na hora em que trabalhava com a tela, fugia dessas regras”, afirma o arquiteto, ao indicar os primeiros quadros do corredor que abre a mostra, com peças de 1920 a 40. “Miró não obedecia a uma regra de anatomia ou de luz e sombra. Ele atacava a tela sem filtro e isso deu origem a desenhos quase sem perspectiva, quase sem gravidade, parece que tudo flutua dentro dos quadros”, complementa.

No pós-guerra, Miró acrescenta outra camada para a surpresa que é a sua pintura: ele muda desde a linha de seus desenhos até os materiais escolhidos para compor as obras. É aí que, em vez da convencional tela em branco, ele passa a usar suportes diferentes. “A madeira já é toda marcada por algum uso prévio, ela pode ter sido um tampo de uma mesa ou cadeira, por exemplo. Miró adota isso e faz uso das manchas, dos nós da madeira, como se já fossem um desenho começado que incorpora à sua obra”, diz Miyada.

O fato de trabalhar com algo já iniciado tira um pouco do controle do artista sobre a obra final, algo que Miró valorizava, principalmente nessa fase. “Para manter o seu descontrole renovado, ele chegou a queimar algumas peças. Outra tática era a de, em vez de aplicar a tinta com pincéis finos ou grossos, lançar e borrifar as cores sobre os suportes. A sua pintura vai se tornando cada vez mais explosiva. O seu gesto, que já era ágil, vai se dramatizando.” É neste período que o espanhol passa a dialogar com os expressionistas abstratos americanos, como Jackson Pollock.

Miró estabelece um telefone sem fio com o grupo americano. Ele expõe em Nova York entre os anos que são fundamentais para a formação do repertório do Pollock, 1950 a 60. “Os expressionistas viram o que Miró estava produzindo e se espantaram, especialmente Pollock. Em contrapartida, na primeira exposição que o americano fez na França, Miró compareceu e ficou surpreso, porque achava que já tinha entendido o que a arte poderia ser”, conta o arquiteto. Miró enxerga na arte abstrata de Pollock uma resposta distinta para o questionamento que ele próprio fazia da arte. “Ele já era um senhor e chegou a pensar se havia se tornado obsoleto”, diz Miyada. Mas, depois, acabou motivado pela mostra: ele concluiu que tinha então um desafio maior pela frente: era preciso responder ao grupo de expressionistas.

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Apesar do seu diálogo com diferentes movimentos, o espanhol, contudo, nunca se prendeu a nenhum manifesto. Mais do que um seguidor, Miró foi alguém que contribuiu com grupos e vanguardas. “Ele não vinha da mesma formação intelectual e não compartilhava do mesmo repertório que os surrealistas franceses, como Andre Breton, mas foi essencial ao movimento. O objetivo do grupo era achar um modo de escapar ao controle da racionalidade e a aposta de Miró no espontâneo surgia como uma alternativa”, conta Paulo Miyada. Os surrealistas experimentaram a ideia do inconsciente, do acaso, dos movimentos psicanalíticos, do automatismo e da metáfora do sonho – tema caro a Salvador Dalí, outro espanhol recebido pelo Tomie Ohtake. “Dalí trabalha em suas telas a relação com o sonho, os desejos recalcados e as obsessões. É uma dinâmica psicanalista. No caso de Miró, a fuga da racionalidade é mais lúdica e surpreendente. Trata-se de um jogo do artista com a própria obra”, compara Miyada.

Anos mais tarde, Joan Miró estabelece contato com um grupo dissidente dos surrealistas, liderado pelo escritor Georges Bataille e pelo pintor André Masson e contribui para dar uma forma visual ao que eles chamam de informe. “O informe, para eles, é uma espécie de elogio a tudo o que a gente não reconhece como organizado pelo homem, por exemplo, as manchas, os espirros, a sujeira, o escatológico, o sexual, a violência. Tudo o que escapava agressivamente aos limites de uma coisa sobre a qual a gente tem domínio, como um círculo, um quadrado, uma instituição, uma regra ou uma norma”, explica Miyada.

Para além das vanguardas, o pintor foi um homem interessado na intersecção possível entre arte e poesia. Por toda a sua vida, ele manteve relação com poetas franceses e catalães e, inclusive, teve o seu destino cruzado com o de um brasileiro cuja obra poética vai da poesia popular às tendências surrealistas. João Cabral de Melo Neto viajou quando jovem para a Espanha e conheceu Miró. “O pernambucano teve contato com um Miró mais maduro, senhor, já consagrado. Pelo que ele relata, foi bem recebido e se sentiu inspirado pelo pintor a escrever um dos seus maiores textos em prosa, que é um ensaio sobre a produção de Miró”, diz Miyada. É por essa proximidade com a poesia que algumas obras de Miró, como o quadro Poema (1972), fazem uma espécie de tradução de versos para a pintura, através do seu traço quase caligráfico. “São pinturas abstratas em que a posição dos elementos sobre a tela é uma espécie de pontuação no espaço em branco, o que dava a Miró à ideia da poesia.” Miró, de fato, dava forma física à poesia. Sem perder a espontaneidade.

A fim de diminuir as filas, a mostra, que tem acesso gratuito às terças-feiras, mediante a retirada de senhas das 10h às 19h na bilheteria do Instituto Tomie Ohtake, oferece a venda online dos tickets para as visitas de quarta a domingo. Os ingressos custam 10 reais (inteira) e estão disponíveis na bilheteria do prédio ou pelo site ingresso.com. A entrada é agendada, de acordo com o horário de preferência do visitante.

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