Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

É possível ler a mente dos cachorros?

Um time de inventores suecos criou um dispositivo que promete traduzir o que se passa na cabeça de um cão. Ao site de VEJA, neurocientistas e especialistas em comportamento animal discutem a validade da invenção e mostram o que sabemos — e o que descobriremos — sobre a mente canina

Por Rita Loiola Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 9 Maio 2016, 14h47 - Publicado em 16 mar 2014, 07h47

Um par de fones de ouvido, dois eletrodos e um microfone. Essa é fórmula do projeto “No More Woof” (“Chega de Latido”, em português), desenvolvido há um ano por inventores suecos da Sociedade Nórdica para a Invenção e Descobertas (NSID), para revelar os pensamentos dos cães. Por 65 dólares é possível comprar uma versão simplificada do dispositivo, que promete identificar cansaço, fome e curiosidade. Ao desembolsar 300 dólares, o comprador recebe um produto que seria capaz de distinguir quatro ou mais pensamentos.

Funciona assim. Os eletrodos do dispositivo fazem um eletroencefalograma em tempo real do cachorro, e identificam padrões. Os padrões elétricos são então transmitidos aos fones, conectados a um software de interface cérebro-máquina e traduzidos em voz alta por um microfone. Dessa forma, quando menos se espera, o cão avisa: “Estou cansado” ou “Quero brincar”.

“Tínhamos um sensor de eletroencefalograma no escritório – aqui na Suécia eles podem ser encontrados em qualquer loja de brinquedos, pois são usados para interagir com videogames – e o colocamos na cabeça de um cachorro que estava brincando por ali. Vimos que ele emitia sinais e tivemos a ideia”, explica Per Cromwell, responsável pela criação do produto.

A cognição canina é um assunto ao qual muitos pesquisadores têm se dedicado. Em uma pesquisa publicada neste mês no periódico Behavioural Processes, o neurocientista Gregory Berns, da Universidade Emory, nos Estados Unidos, descobriu, com a ajuda da ressonância magnética, que os cães têm a habilidade de experimentar emoções positivas, como amor e apego. Berns e os inventores nórdicos se dedicam a responder a mesma questão: “Em que meu cachorro está pensando?”. O que varia – e muito – é o rigor metodológico empregado.

Leia também:

Seu cachorro é um gênio – saiba o porquê

Estudo afirma que primeiros cães foram domesticados na Europa

Da equipe sueca fazem parte designers, cientistas, técnicos e artistas – “alguns deles malucos”, esclarece Cromwell. “Nossa tecnologia mede a quantidade de atividade cerebral. Se ela é muita, então sabemos que, provavelmente, o cão está curioso ou agitado, o que se traduz como ‘Quero brincar’ ou ‘O que é isso?’. Se a atividade é menor, sabemos que o cão está cansado e, provavelmente, diria ‘Quero ficar sozinho'”, explica. Até o fim do ano, a promessa é identificar mais padrões e desenvolver versões chamadas “superiores”.

Para isso, o time lançou em dezembro uma campanha de crowdfunding para arrecadar recursos na plataforma digital Indigogo. O objetivo era criar “o primeiro protótipo para traduzir pensamentos animais em inglês”. Da meta de 10.000 dólares, os suecos arrecadaram mais que o dobro: 22.664 dólares.

Continua após a publicidade

Mais criatividade que ciência – O grupo de inventores nórdicos deixa claro em seu site que todos os seus produtos devem ser encarados como esboços ou suportes de pesquisas. Além do tradutor de pensamentos caninos, eles criaram um tapete mágico para animais de estimação (que eleva a 7 centímetros do chão bichos com até 2,4 quilos), uma nuvem para colocar dentro de casa e reproduzir o clima exterior e uma cadeira de balanço que recarrega iPads e iPhones.

“A Sociedade é feita, principalmente, de pessoas criativas com um grande interesse em tecnologia. Somos mais criativos do que científicos”, explica Cromwell. “Como nosso trabalho é conceitual, precisamos de mentes ágeis. Cientistas às vezes não são tão flexíveis, então tentamos encontrar pessoas que tenham um conhecimento maior de coisas diferentes.”

Sinais confusos – A crítica talvez seja dirigida a neurocientistas e especialistas em comportamento animal, que se unem para dizer que a invenção sueca não deve ser levada a sério. Por enquanto. “O projeto descrito no site ‘Chega de latidos’ não é ciência”, afirma o neurocientista Attila Andics, pesquisador da Universidade Eötvös Loránd, na Hungria. “Na minha visão, um grupo de pessoas criativas e entusiasmadas apareceu com algo divertido e agora está querendo dinheiro para testá-lo – sem, talvez, ter consultado um especialista no assunto.”

Segundo Gregory Berns, o eletroencefalograma não é a estratégia adequada para analisar os sinais cerebrais de emoções em cães. “Diferentemente dos humanos, a maior parte da cabeça dos cachorros é feita de músculos. E o movimento desses músculos causa sinais elétricos que também são captados pelos eletrodos. Eles incluem movimentos das mandíbulas, dos olhos e das orelhas”, explica o pesquisador.

Continua após a publicidade

Isso quer dizer que a agitação da orelha do animal ao espantar um mosquito emitiria uma quantidade considerável de sinais elétricos. No dispositivo da Suécia, esse movimento isso seria traduzido por “Quero brincar”.

Leia também:

Por que os cães latem?

Encontrado na Sibéria segundo fóssil mais antigo do cachorro moderno

Continua após a publicidade

No que os cães pensam – Nos últimos três anos, Berns tem se dedicado a decifrar o pensamento canino – embora a ciência ainda não saiba se os animais são capazes de raciocinar. Ele treinou o seu cão e mais onze cachorros para se submeterem a um exame de ressonância magnética, mapeou seus cérebros e descobriu que a estrutura e função de uma de suas partes importantes, chamada núcleo caudado, é bastante semelhante a de humanos. Em nós, essa região está ligada à antecipação de coisas que gostamos, como comida ou amor. Os cães estudados por Berns mostraram uma intensa atividade no núcleo caudado quando sentiam o cheiro dos donos ou viam sinais de comida. Também respondiam positivamente quando o dono retornava após um rápido momento fora.

Suas conclusões, publicadas no periódico científico e no livro How Dogs Loves Us: A Neuroscientist and His Adopted Dog Decode the Canine Brain (Como os Cachorros nos Amam: Um Neurocientista e Seu Cão Adotado Decodificam o Cérebro Canino, lançado em 2013 e sem edição em português), indicam que os cães demonstram amor por meio de atitudes inequívocas: depois de comerem, sentam-se aos pés do dono como se agradecessem o alimento; querem dormir perto de quem passa mais tempo com eles ou fazem festa quando o dono volta depois de horas afastado.

“Nossa meta é determinar como funciona o cérebro dos cães e, mais importante, o que eles pensam de nós. Depois de treinar e escanear uma dúzia de cachorros, minha conclusão é: cães também são gente”, afirmou o pesquisador em artigo publicado em dezembro no jornal The New York Times.

Continua após a publicidade

Percepção canina – Além das sensações positivas, os cães também sabem decodificar sons humanos. Há pouco menos de um mês, o neurocientista húngaro Attila Andics, comprovou em um estudo publicado no periódico Current Biology que, pelo tom da voz, cachorros podem identificar se o dono está feliz ou triste. Para chegar a essa conclusão, ele e sua equipe fizeram exames de ressonância magnética nos animais, também treinados para os testes. Perceberam que seu cérebro tem mais atividade quando ouve vozes humanas ou latidos, e se intensifica se o som ouvido é emocionalmente positivo.

Os pesquisadores foram os primeiros a perceber que as áreas cerebrais que respondem à voz são parecidas em homens e cães. “Acreditamos que, por isso, a comunicação vocal entre as duas espécies é fácil e bem sucedida”, diz Andics. Entre os próximos passos de suas pesquisas está descobrir como funciona a sensibilidade dos bichos a palavras e analisar se os cães processam e consolidam sua memória durante o sono, de maneira semelhante aos humanos.

“O fato de que os cachorros são capazes de participar desses experimentos abre espaço para um novo caminho na área da neurociência comparada. Listamos uma dezena de testes que queremos fazer, que possam mostrar como o cérebro dos animais responde a informações fonéticas e semânticas e como eles reconhecem e categorizam informações sociais”, diz o pesquisador. “Sabemos muito bem que cães são bons em se conectar com os sentimentos de seus donos e que um bom dono pode detectar mudanças emocionais em seus bichos – mas agora começamos a entender por que tudo isso acontece.”

Linguagem de cachorro – Os milhares de anos de convivência entre cães e humanos fizeram com que a comunicação entre as duas espécies se tornasse bastante eficaz. E isso se baseou em duas estratégias bem pouco tecnológicas: a atenção dos donos e os latidos dos animais. No livro Seu Cachorro é um Gênio!, publicado em 2013, o neurocientista americano Brian Hare, fundador do Centro de Cognição Canina da Universidade Duke, nos Estados Unidos, mostra que os animais desenvolveram três grandes grupos de latidos: os de alerta, os para chamar a atenção e os para brincar. Os primeiros são mais graves e os últimos, mais agudos e espaçados. Cães também são capazes de emitir diversos sons para se expressar – com altura, duração e frequências diferentes.

Continua após a publicidade

De acordo com o biólogo John Bradshaw, pesquisador da Universidade de Bristol, na Inglaterra, que estuda o comportamento de animais de estimação há trinta anos, toda essa variedade de barulhos surgiu porque esses bichos evoluíram desenvolvendo estratégias comunicativas complexas com os humanos. Em seu último livro, Cat Sense (publicado em 2013 e ainda sem tradução no Brasil), Bradshaw compilou os últimos estudos sobre comportamento e neurociência animais e mostra como essa nova leva de pesquisas está ensinando os homens a interpretar não só os latidos, mas também as atitudes e gestos de seus bichos. É o avanço científico que vai nos ensinar a decodificar os pensamentos de nossos cachorros, sem a necessidade de nenhum aparelho.

Por isso, para o cientista, um equipamento como o dos inventores suecos ainda está na categoria de produtos caros e enganosos. “Hoje ainda não há tecnologia para ler a mente de um cachorro enquanto ele está se movimentando. E duvido que alguém consiga captar eletroencefalogramas confiáveis através dos pelos”, afirma. Em alguns anos, no entanto, teremos mais habilidades para compreender as emoções de nossos animais – e essa capacidade virá do conhecimento fornecido por uma série de estudos em biologia, neurociência e comportamento animais, que se intensificaram nas últimas décadas. A união das três áreas fará com que, em alguns anos, possamos aprender ainda mais sobre o que se passa dentro da cabeça de nossos cachorros, interpretando suas sensações e sinais.

“Os cães certamente se beneficiam do conhecimento que temos de suas verdadeiras naturezas, que só pode vir da ciência”, afirma o biólogo. “Eventualmente, no futuro, será possível medir as emoções caninas por meio de ressonância magnética.”

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

O Brasil está mudando. O tempo todo.

Acompanhe por VEJA.

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.