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A espiritualidade sem Deus

Para o filósofo americano Sam Harris é possível ter experiências espirituais sem passar pelo caminho da religião. Nesta entrevista ao site de VEJA, o autor explica como isso acontece, por que o ceticismo científico é essencial para alcançar esse estado de felicidade e amor sem limites e indica técnicas para chegar até ele

Por Rita Loiola Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 9 Maio 2016, 14h46 - Publicado em 14 dez 2014, 07h33

Ao caminhar sobre a montanha onde Jesus proferiu seu sermão das bem-aventuranças, o filósofo americano Sam Harris foi invadido por uma profunda felicidade, que silenciou seus pensamentos. A sensação de estar conectado ao cosmos e sua verdade perseguiu o escritor durante aquele verão, enquanto refazia os passos da figura central do cristianismo. Se Harris não fosse o autor do livro A Morte da Fé, de 2004, e um dos principais defensores de uma corrente chamada Novo Ateísmo, ele provavelmente diria que vivenciou uma experiência de transcendência religiosa. Entretanto, para ele, aqueles dias não passaram de uma expansão da consciência, natural e ordinária. Uma vivência espiritual, mas não religiosa.

Para Harris, que também é doutor em neurociência pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, desligar a espiritualidade das religiões é o grande passo que faltava às doutrinas seculares. Em seu novo livro, Waking Up (Despertando), recém-lançado nos Estados Unidos, o filósofo mostra que é possível chegar à transcendência e atingir a mais plena felicidade sem se aproximar da essência divina. Mais que isso, indica técnicas, como meditação, respiração e até o uso de alucinógenos, que facilitam o percurso até a espiritualidade dos ateus.

“A espiritualidade deve ser distinta da religião. Pessoas de todos os credos e aquelas que não têm fé alguma têm os mesmos tipos de experiências espirituais. Um princípio mais profundo deve estar em funcionamento”, afirma Harris.

É esse “diamante escondido” que o filósofo pretende arrancar das religiões, usando para isso os últimos achados científicos sobre o cérebro e, principalmente, seu ceticismo ferrenho. Harris acredita apenas no que pode ser provado por experimentos científicos e, portanto, alma, Deus ou revelações da essência superior não entram na espiritualidade que defende em seu livro. Nesta entrevista, concedida ao site de VEJA, Harris explica o que é essa nova espiritualidade e mostra como a ciência é o caminho fundamental para nos alçar a esse estado de felicidade.

Outros títulos:

O ESPÍRITO DO ATEÍSMO

Em 2006, o filósofo francês André Comte-Sponville, ex-professor da Sorbonne e autor de uma dezena de livros traduzidos em 24 línguas, escreve esse livro para mostrar como aqueles que não acreditam em Deus podem vivenciar a espiritualidade. De acordo com o autor, esse é um atributo que nos difere dos demais animais e possibilita a contemplação da arte ou da natureza. Em suas páginas, Sponville explica como essa comunhão com o absoluto, inexplicável, condiz com o materialismo, o racionalismo e o naturalismo.

GOD ON YOUR OWN

Também em 2006, o ex-monge Joseph Dispenza ensinou em seu livro God on Your Own (Deus do seu jeito, em tradução livre) como alcançar a espiritualidade fora das religiões. Seu objetivo é mostrar o caminho até a fonte direta da transcendência, sem dogmas, regras ou doutrinas.

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LIVING WITHOUT GOD

Outro “novo ateísta” que publicou um livro sobre como chegar ao absoluto sem Deus foi Ronald Aronson, professor de história das ideias na Universidade Estadual de Wayne, nos Estados Unidos. Em seu livro Living Without God (Vivendo sem Deus, em tradução livre), lançado em 2008, o americano substitui a espiritualidade pela moral e responsabilidade que temos pelo planeta, pelo bem-estar alheio e pela política.

Leia também:

Entre a fé e a razão

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“É possível acreditar em Deus usando a razão”, afirma Willian Lane Craig

A neurociência da espiritualidade

Por que um ateu resolveu escrever sobre espiritualidade? Porque transcendência e amor incondicional são algumas das experiências mais importantes que as pessoas têm em suas vidas. Mas a maioria delas interpreta esses episódios pela lente da religião. Isso não faz sentido, porque cristãos, muçulmanos, judeus, budistas e ateus têm o mesmo tipo de experiências. Então sabemos que nenhuma dessas doutrinas religiosas incompatíveis pode ser a melhor explicação para seu significado.

Como funciona essa base escondida nas religiões? A ciência não consegue localizar no cérebro uma região específica onde o eu se localiza, como fazemos com a memória ou a raiva. A ideia de que há um espaço no cérebro onde o eu, ou nossa consciência, está escondida não faz nenhum sentido anatômico ou científico. Assim, se a consciência não é um espaço delimitado, ela pode ser alterada ou expandida. A espiritualidade é essa transcendência do eu.

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Se a fé revelou a espiritualidade, por que desligar essa experiência da alma ou de Deus?

Em sua origem, espírito vem do latim spiritus, que significa respiração ou sopro. Por volta do século XIII, essa palavra foi confundida à crença de almas e fantasmas. No entanto, não há qualquer evidência que alma ou espíritos existam – mas podemos estar certos de que a consciência existe. Qualquer que seja sua relação com o mundo físico, a consciência é a base de tudo o que experimentamos. Não importa se estamos tomando um café ou tendo uma visão de Jesus, estar consciente é a condição prévia para qualquer experiência do presente. Na minha visão, espiritualidade é um processo de descoberta de algumas coisas sobre a natureza da consciência por meio da introspecção.

Ou seja, é uma experiência mental. Ela também nos levará a responder as questões fundamentais da existência, como ‘de onde viemos’ ou ‘qual o sentido da vida’? Quando falo de espiritualidade, estou me referindo à figura da primeira pessoa da consciência e a possibilidade de superar alguns tipos de sofrimento psicológico, como aqueles vindos da necessidade da satisfação constante dos desejos ou da percepção de que, mesmo tendo uma família amorosa, dinheiro, saúde e comida, algo ainda está faltando. Esses são fatos empíricos sobre a mente humana, testados pela ciência. As religiões tendem a fazer especulações sobre a origem do cosmo, a existência de mundos e seres invisíveis e sobre a origem divina de alguns livros. Mais que isso, fazem essas afirmações com base em montanhas de evidências contraditórias. Há uma enorme diferença entre falar que, se alguém usar sua atenção de certa forma, como durante a meditação, vai perceber algo muito interessante sobre sua mente e dizer que um carpinteiro do século I nasceu de uma virgem e estará voltando dos mortos. A espiritualidade não é importante apenas para ter uma boa vida. Ela é importante para entender a mente humana.

Quais são as pesquisas científicas nos ajudam a compreender a subjetividade humana? Sabemos que a mente humana é produto do cérebro humano. No entanto, a consciência não pode ser definida de acordo com critérios externos. Um famoso trabalho de Roger Sperry, que ganhou o Nobel de Medicina em 1981, mostrou, com o auxílio de pacientes que sofreram acidentes cerebrais, que os dois hemisférios do cérebro têm habilidades distintas e podem funcionar de maneira independente. E há razões científicas para acreditar que eles são também independentemente conscientes. As habilidades cognitivas que nos fazem humanos, como a reflexão ou a capacidade de julgamento, estão no hemisfério direito, no entanto, apenas o hemisfério esquerdo possui a habilidade da linguagem. Isso indica que é problemático falar que cada um de nós tem um único eu, uma consciência indivisível, ou uma alma responsável por nossa individualidade.

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Como assim? A ideia de alma surge da sensação de que nossa subjetividade tem uma unidade, simplicidade e integridade que deve transcender as engrenagens bioquímicas do corpo. Mas a ciência mostra que nossa subjetividade pode ser dividida em, pelo menos, duas. Pesquisas feitas na última década também mostram que há partes do nosso cérebro trabalhando sob o consciente que afetam nossa vida cotidiana. Isso significa que a consciência pode ser expandida em novas direções para termos uma percepção mais clara da realidade, sem a necessidade de que isso seja reflexo de uma entidade superior operando. Se olharmos de perto para essa sensação de que somos um eu indivisível, ela desaparece. E esse é um experimento que pode ser feito no laboratório de sua própria mente.

Há técnicas que podemos usar para isso? Ao contrário de muitos ateus, passei longos anos da minha vida buscando experiências como as que deram origem às religiões do mundo. Estudei com monges, lamas, iogues e com pessoas que passaram grande parte de suas vidas em reclusão meditando. Ao todo, passei dois anos em retiros de silêncio, em períodos de uma semana a três meses, praticando técnicas variadas de meditação de doze a dezoito horas por dia. Posso afirmar que quem passa tanto tempo aperfeiçoando técnicas de respiração, meditação e pensamento dirigido tem experiências normalmente inacessíveis a quem não tem acesso a essas práticas. Acredito que esses estados mentais dizem muito sobre a natureza da consciência e as possibilidades de bem-estar humano.

O início de Waking Up traz sua experiência com o MDMA (metilenodioximetanfetamina, mais conhecida como a droga ecstasy). Foi ela quem abriu as portas da espiritualidade em sua vida? Sim. O MDMA provou para mim que era possível ter uma percepção radicalmente diversa de mim mesmo, do mundo e de minhas conexões éticas com os outros. É claro que não recomendo que todos usem a droga, porque isso traz consequências à saúde e é ilegal. Mas preciso ser honesto sobre o papel que ela desempenhou em meu próprio desenvolvimento espiritual.

Como o senhor vivencia sua espiritualidade? Faz muitos anos que usei drogas psicodélicas e minha abstinência está relacionada aos riscos para a saúde de seu uso. Tenho momentos espirituais todos os dias, em lugares santos, em meu escritório ou enquanto escovo os dentes. Isso não é um acidente, é o resultado de anos da prática de meditação com o propósito de acabar com a ilusão do eu. A espiritualidade continua sendo o grande vazio das doutrinas seculares, do humanismo, do racionalismo, do ateísmo e de todas as outras posturas defensivas que homens e mulheres assumem diante da presença da fé irracional. Pessoas dos dois lados se dividem imaginando que experiências transcendentes não têm lugar na ciência, a não ser em um hospital psiquiátrico. Mas há um caminho do meio entre fazer da espiritualidade uma experiência religiosa e não ter espiritualidade alguma. Não precisamos de mais dados científicos para dizer que a transcendência é possível. Está em nossa capacidade mental acordar do sonho de um ser único e indivisível e, assim, nos tornarmos melhores em contribuir para o bem-estar dos outros.

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