Na Argentina, Dilma inaugura mudanças na política externa
Presidente sinaliza novo rumo na política externa ao colocar os direitos humanos, sempre desprezados por Lula, como prioridade
O primeiro passo para se livrar da herança maldita: a pedido da própria presidente, além da agenda de discussões bilaterais, um encontro com as líderes das organizações dos direitos humanos das Mães e Avós da Praça de Maio
Não é apenas a primeira visita presidencial e a primeira vez em que duas mulheres decidem e negociam questões sobre seus países. Na viagem de Dilma Rousseff à Argentina para uma reunião com a presidente Cristina Kirchner, um dos aspectos mais importantes é o início da resolução de um grande nó brasileiro, uma vergonha mundial estabelecida no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Não negociarei direitos humanos, não farei concessões nessa área”, disse Dilma em entrevista à imprensa argentina, um dia antes de embarcar para Buenos Aires. O primeiro passo para se livrar dessa herança maldita: nesta segunda-feira, a pedido da própria presidente, além da agenda de discussões bilaterais, um encontro com as líderes das organizações de defesa dos Direitos Humanos das Mães e das Avós da Praça de Maio.
Por volta das 16 horas, depois de chegar atrasada ao encontro com Cristina devido à chuva, a presidente brasileira se reuniu com as representantes do movimento que busca filhos e netos desaparecidos durante a ditadura militar argentina. Por meio de um método de cruzamento de informações e exames de DNA, já foram localizadas 102 pessoas arrancadas dos pais quando eram bebês e entregues a outras famílias. Dilma recebeu um lenço branco, símbolo do movimento, um livro contendo fotos da ação militar argentina e um pedido. A presidente do grupo Avós da Praça de Maio, Estela Barnes de Carlotto, pediu à mandatária brasileira que sejam abertos os arquivos do regime militar brasileiro.
Defender os direitos humanos nunca foi uma preocupação do governo anterior. Com a mudança de comando, o Itamaraty tem consultado diplomatas sobre uma nova política externa. Departamentos do ministério das Relações Exteriores, embaixadas e a missão do Brasil da Organização das Nações Unidas (ONU) estão reavaliando o posicionamento do país em relação a direitos humanos e a regimes autoritários, como o de Mahmoud Ahmadinejad no Irã, a quem Lula chamou mais de uma vez de “irmão.”
Na reunião com as ativistas da Praça de Maio, Dilma disse que pretende levar para o Brasil a experiência de uma parte do grupo em criar projetos na área social. Prudentemente, como tem agido até aqui à frente da Presidência, evitou qualquer compromisso quanto à abertura de arquivos da época da ditadura brasileira, tema delicado para as Força Armadas.
No mais, Dilma cumpriu sua agenda diplomática. Emocionou-se ao defender a parceria cultural e econômica entre Brasil e Argentina e, em declaração ao lado de Cristina, afirmou que os dois países devem fortalecer acordos em educação, cultura e comércio. “Este é um momento especial para dois grandes países de sociedades desenvolvidas que foram capazes de eleger duas mulheres presidentes”, afirmou. “Este é o primeiro de muitos encontros, e como é o primeiro, estamos um pouco emocionadas.”
Negócios – A visita foi simbólica também do ponto de vista do comércio bilateral. A relação com o maior sócio brasileiro na América do Sul foi definida como “estratégica” por Dilma. Há 250 empresas brasileiras na Argentina, em áreas calçadistas, alimentícias e de autopeças. Em 2010, o comércio bilateral registrou um recorde de 32,9 bilhões de dólares. As exportações brasileiras para o país vizinho cresceram 87% nos últimos cinco anos, atingindo 18,5 bilhões de dólares no ano passado.
No entanto, o que o Brasil importou da Argentina cresceu ainda mais, 130%, chegando a 14,4 bilhões de dólares no ano passado. Embora a balança comercial ainda seja mais favorável ao Brasil, o crescimento argentino é resultado da “política do irmão mais velho”, do governo anterior, que cedeu ao que é usado como muleta pelo país vizinho – a justificativa de dificuldades econômicas – e às constantes pressões por medidas de proteção comercial contra produtos brasileiros.
Em declarações publicadas no último domingo pelos principais jornais do país vizinho, Dilma havia justificado sua intenção de manter uma estreita relação com o principal parceiro comercial do país, mas sinalizou que a parceria tem de ser reformulada. “Brasil e Argentina podem fazer e farão isso de maneira mais eficaz, à medida que nossas economias se articulem mais estreitamente, que se desenvolvam e achem laços nos quais os dois povos ganhem com essa proximidade em matéria de desenvolvimento econômico, tecnológico e qualidade de vida”, disse.
Outro recado foi dado aos vizinhos da América do Sul, que durante o governo anterior costumavam violar acordos, como ocorreu no caso da nacionalização das operações Petrobrás, em 2006, pela Bolívia. Em entrevista, Dilma afirmou que não aceitará quebras de contratos empresariais e comerciais. Segundo a presidente, o respeito aos contratos é o método mais eficaz para uma região com “grande horizonte” de desenvolvimento. “Digo isso do ponto de vista de um país que sempre cumpriu os contratos. No governo do qual participei, tínhamos contratos com quem discordávamos, mas os mantivemos porque isso implicava respeitar a institucionalidade do país”, afirmou.
Homenagem – Dilma fez uma homenagem ao ex-presidente argentino Néstor Kirchner, marido de Cristina, morto em outubro do ano passado. “Quero homenagear o presidente Néstor Kirchner, não só como ex-presidente da Argentina, mas como construtor da União de Nações sul-americanas (Unasul)”, disse. Antes de Dilma falar, Cristina havia citado Kirchner e Lula que, segundo ela, relançaram o Mercosul e melhoraram a relação entre os dois países. Cristina disse que Dilma teve “consciência histórica”, ao escolher a Argentina como primeiro país que visitou.
Após a declaração conjunta, as presidentes, que não responderam a perguntas de jornalistas, seguiram para um almoço no Palácio San Martín, sede da chancelaria argentina. De lá, Dilma embarcaria de volta para o Brasil.