No mercado editorial brasileiro, em que mais de 200 milhões de livros são vendidos por ano, algumas obras biográficas desaparecem das prateleiras das livrarias e bancas de revistas em menos de vinte e quatro horas. Não porque foram um fenômeno de vendas, e sim porque foram retiradas do mercado a mando da Justiça – confira aqui alguns casos polêmicos envolvendo biografias. A onda de proibição de biografias não-autorizadas, que tem dado prejuízo financeiro às editoras e cerceado a liberdade de expressão dos autores, pode estar com os dias contatos graças a um projeto de lei (PL) do deputado federal Antônio Palocci (PT-SP) que trata do assunto.
O projeto já recebeu parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, mas foi retirado da pauta de votação da comissão por duas vezes por falta de consenso. Se aprovado, seguirá para o Senado.
“O projeto vai resguardar o direito dos brasileiros a terem acesso aos seus personagens”, diz Sônia Machado Jardim, presidente do Sindicato Nacional de Editores de Livros (Snel) e diretora da Editora Record. “Não pretendemos que sejam publicadas inverdades nem calúnias, mas que detalhes que revelem traços verídicos de personalidades públicas, que ajudem a compreender sua trajetória de vida, possam ser públicos”, acrescenta.
Chega de proibição – O PL, de número 3378/08, pretende alterar o artigo 20 do Código Civil Brasileiro de 2002. O texto substitutivo diz que a ausência de autorização não impedirá a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade.
Segundo análise do Observatório do Livro e da Leitura, o PL também contempla as obras audiovisuais adaptadas de livros biográficos para TV e cinema, sem necessidade de autorização. Segundo Roberto Feith, diretor-presidente da Editora Objetiva, a intenção é separar a pessoa pública da privada e fazer com que o direito à privacidade e à imagem seja reduzido gradativamente à medida em que as pessoas se tornem públicas.
Herdeiros – De acordo com os editores, a maioria das ações judiciais contra as editoras é impetrada pelos herdeiros dos biografados. No Brasil, os direitos sucessórios são estendidos até o neto, podendo incluir o bisneto, conforme o entendimento jurídico. “Muitas vezes eles nem questionam a veracidade do fato, estão mais preocupados em ganhar dinheiro”, afirma Feith.
“A indústria do herdeiro está ficando cada dia mais intolerável”, declara o escritor Ruy Castro, que viu o seu livro Estrela Solitária � Um Brasileiro Chamado Garrincha alvo de ação judicial por parte das filhas do jogador. “Uma semana antes de o livro sair, em novembro de 1995, um dos advogados das filhas ligou para a editora, comunicando que ia iniciar o processo. Mas disse que ‘tinha acordo’: se a editora pagasse 1 milhão de reais”, conta. Segundo Castro, a Companhia das Letras não aceitou a “chantagem”. A consequência foi a proibição da venda e a reimpressão do livro por 11 meses. O processo se arrastou até 2006, quando houve acordo entre as partes.
Na opinião do diretor-geral da multinacional Editora Planeta – que publicou Roberto Carlos em Detalhes (Planeta, 2006) e foi obrigado a retirá-lo do mercado após decisão judicial -, o Brasil é o país com a legislação mais conservadora em que a empresa atua. “Em qualquer outro país, se o biografado sente que sofreu algum prejuízo de imagem, ele tem todo o direito de reclamar”, explica. “Mas os livros nunca são recolhidos por decisões judiciais, como acontece aqui.”
Biografias problemáticas Algumas obras que foram parar na Justiça |
Obra e autor (editora) | Ano | Biografado | O que aconteceu | |
Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo César Araújo (Planeta) | 2006 | O cantor Roberto Carlos | O livro foi recolhido das livrarias em abril de 2007, depois de o cantor entrar na Justiça alegando que a obra invadia sua privacidade | |
Estrela solitária, de Ruy Castro (Companhia das Letras) | 2005 | O jogador de futebol Garrincha | O livro foi recolhido das livrarias e só voltou ao mercado 11 meses depois, após acordo com as filhas do jogador | |
Em Busca da Luz, de Luiz Carlos Maciel e Maria Luiza Ocampo (Record) | 2002 | Atriz Dorinha Duval, a primeira Cuca do Sítio do Picapau Amarelo, que revela por que matou o marido, em 1980 | O enteado da atriz pediu o recolhimento da obra alegando que fatos de sua infância foram expostos sem autorização. A Justiça negou o pedido | |
Apenas Uma Garotinha, Eduardo Belo e Ana Cláudia Landi (Planeta) | 2005 | A cantora Cássia Eller | Uma amiga e um tio da cantora alegam que foram prejudicados por detalhes do livro. O caso ainda corre na Justiça | |
Na Toca dos Leões, de Fernando Morais (Planeta) | 2005 | A vida de Washington Olivetto, Javier Llussá Ciuret e Gabriel Zellmeister, os fundadores da agência de publicidade W/Brasil | O deputado federal Ronaldo Caiado � citado na obra � pediu o recolhimento do livro. A Justiça não atendeu ao pedido | |
O Mago, de Fernando Morais (Planeta) | 2008 | O escritor Paulo Coelho | A Justiça obrigou a editora a pagar 50.000 reais ao ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer por dano de imagem dele, mas negou o pedido o recolhimento do livro | |
A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa, de Alaor Barbosa (LGE Editora) | 2008 | O escritor João Guimarães Rosa | A Justiça proibiu a venda e determinou a apreensão da obra, atendendo a pedido da filha do escritor, Vilma Guimarães Rosa |