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Em Córdoba, “Mesquita-Catedral” reflete conflito entre crenças

Por The New York Times
7 nov 2010, 14h14

A grande mesquita de Córdoba teve início com os califas muçulmanos no século 8. Seus frondosos pilares e arcos listrados em vermelho e branco tinham a intenção de transmitir uma ideia sobre o senso do infinito. Quando os cristãos retomaram a Espanha no século 13, a mesquita tornou-se catedral.

Hoje em dia, há placas por toda a cidade da Andaluzia indicando o caminho até o monumento, tombado como Patrimônio Mundial da UNESCO, chamado de “mesquita-catedral” de Córdoba. Mas a terminologia está agora em discussão. No mês passado, um bispo de Córdoba deu início a uma campanha para que a cidade parasse de se referir ao monumento como mesquita, com o intuito de não “confundir” os visitantes.

Até agora, o assunto é tido como um simples erro de semântica para o prefeito, que já avisou que não vai alterar as placas pela cidade. Mas a discussão vai além da troca ou não delas. O assunto gira em torno do último capítulo que compõe a riquíssima história do símbolo mais emblemático entre as relações entre cristãos e muçulmanos na Europa – e um conflito sobre o legado da península de “Al Andalus”, quando parte da Espanha, sob o domínio de forças islâmicas, era um local de convivência bastante complexa entre cristãos, judeus e muçulmanos.

A discussão ganha ainda mais peso com a visita do papa Bento 16 – ele chegou no sábado (06) – à Espanha, que ele identificou como mais uma batalha a ser vencida para fortalecer a fé cristã no continente europeu, onde o islamismo tem se espalhado e crescido rapidamente. A polêmica em Córdoba começou em meados do outubro, quando o bispo Demetrio Fernandez publicou um artigo opinativo no ABC, jornal diário espanhol de centro-direita. “Não há problema algum em dizer que os califas muçulmanos construíram este tempo de adoração a Deus”, escreveu o bispo. “Mas é completamente inadequado chamá-la de mesquita hoje em dia porque o lugar já não é uma mesquita há séculos, e se referir ao local dessa forma pode confundir as pessoas.”

“Da mesma forma, também não seria correto chamar a atual mesquita da antiga cidade de Damasco de Basílica de São João ou esperar que ela possa servir como lugar para adoração tanto de muçulmanos quanto de cristãos”, ele completou, fazendo uma referência ao local onde uma mesquita Umayyad foi erguida no século 8 no lugar de uma igreja datada do século 4, que ainda guarda os restos mortais de São João Batista.

O monumento de Córdoba,¬ uma das grandes joias arquitetônicas do mundo, com pilastras dispostas de modo a desorientar e ao mesmo tempo enaltecer a sensação de poder – já arrastou cerca de 1.1 milhão de visitantes em 2009, em sua maioria apenas simples turistas, e não fieis. Mas representantes da diocese se irritam ao saber que alguns muçulmanos já tentaram orar no local, mesmo depois de consagrado como catedral cristã.

“Sempre que algum fundamentalista islâmico aparece num vídeo da Al Jazeera ou qualquer outro canal desse tipo, vem à tona o assunto da conquista de Al Andalus, a antiga dominância dos muçulmanos, e as pessoas começam a aparecer aqui exigindo entrar na catedral e fazer dela também um lugar para adoração mulçumana”, conta o reverendo Manuel Montilla Caballero, responsável por supervisionar as visitas noturnas feitas ao monumento, que fazem uso de iluminação dramática – quase cênica – para exibir a arquitetura esplendorosa do lugar.

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Hoje, o legado da península de Al Andalus é altamente contestada. Enquanto Osama bin Laben e outros radicais espalham publicamente que o controle político de Al Andalus deve voltar às mãos das forças islâmicas – ou seja, que o povo islâmico deve retomar o controle da Espanha e, consequentemente, dominar toda a Europa – outros enxergam Al Andalus como um lugar quase utópico para a convivência tranquila entre cristãos, muçulmanos e judeus.

A cidade carrega também uma riquíssima história judaica. Maimônides, filósofo e um importante membro da comunidade judaica local nasceu no século 12 em Córdoba. A modesta casinha na região da Juderia, virou ponto turístico, bem como toda a vizinhança – um pedacinho do povo judeu que foi expulso da península ibérica por Fernando e Isabel em 1492.

No século seguinte, quando líderes do catolicismo espanhol começaram a destruir templos de adoração de muçulmanos e judeus, o imperador Carlos V de Habsburgo, se surpreendeu com a beleza do monumento de Córdoba e ordenou que ele fosse preservado.

“O monumento de Córdoba é um exemplo de universalismo, sobre como diferentes culturas e religiões podem coexistir e trocar experiências”, declarou Isabel Romero, porta voz da associação da comunidade islâmica em Córdoba. E para total desprazer dos católicos, o grupo quer que a diocese crie uma área na catedral para que muçulmanos possam fazer suas orações. “Seria um gesto exemplar”, completou Romero. Um outro ponto complicado, que só demonstra as ironias históricas que acontecem hoje na Espanha: Isabel era uma católica que se converteu ao islamismo, como cerca de 300 mil entre os 2.2 milhões de muçulmanos na Espanha.

Esta semana, um juiz em Córdoba acusou oito austríacos muçulmanos por crime de perturbação da ordem pública; eles entraram na catedral e começaram a orar em voz alta, perturbando os outros no local e resistiram aos policiais e seguranças que tentaram fazer com que parassem.

Enquanto isso, um grupo conhecido como a Associação Mulçumana de Córdoba, que representa cerca de 2.500 muçulmanos na cidade de 300 moradores, afirmou que a intenção não é fazer com que os seguidores da religião mulçumana sejam aceitos na mesquita-catedral para realizar seus rituais e orações. “Não, não, não”, disse Kamel Mekhelef, secretário da associação, cujos membros frequentam uma mesquita de Córdoba construída em 1940 por soldados norte-africanos que lutaram do lado de Franco. “Exigir que o lugar seja compartilhado para as orações das duas religiões só vai gerar mais alvoroço, e aumentar o clima de tensão”, completou Mekhelef.

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Mas disse ainda que ele e seu grupo se opunham veementemente ao pedido do bispo para tirar a palavra “mesquita” das placas da cidade.

“É uma tendência que sinto em toda a Espanha, uma certa opinião que tende a anular toda e qualquer relação islâmica à história espanhola”, disse ele. Representantes locais afirmam não ter nenhuma intenção em mudar as placas. “A declaração do bispo criou uma polêmica desnecessária”, afirmou o prefeito de Córdoba, Andres Ocana, do partido Izquierda Unida. “A causa não é apoiada pela população, nem por partidos políticos, nem mesmo pelo Partido Popular”, conta ele, referindo-se ao partido de oposição de centro-direita.

Um porta voz da diocese, Juan Jose Jimenez Gueto, disse que o bispo se nega a aprofundar os comentários que publicou.

Recentemente, em visita ao monumento, visitantes parecerem estar divididos sobre o assunto. “É uma catedral e deve ser chamada apenas de catedral”, contou Daniel Ramirez, um turista da Sevilha. “Não é uma questão de termos, é uma questão de cultura.” Já Celestino Gonzalez, de Málaga, discorda do amigo. “Isso aqui é uma mesquita”, afirmou Gonzalez, enquanto mostrava a arquitetura islâmica. “Eu não estou aqui pra rezar, mas não vejo nenhum problema em deixar os dois nomes. Para mim é a mesma coisa.”

Conchi Bello, que mora perto do monumento, disse que debate é puramente acadêmico. “Para nós, para todos aqui em Córdoba, é normal informar os turistas como eles fazem para chegar à mesquita. A gente não se sente ofendido. Pelo contrário, é um bom exemplo da história da nossa terra.”

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