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As lições do livro que desensina

'Por Uma Vida Melhor' é exemplo de doutrina difundida há décadas na educação brasileira, segundo a qual a norma culta é um fardo ao qual devemos nos curvar por imposição social, e não pelos benefícios que ela propicia

Por Nathalia Goulart
20 Maio 2011, 20h31

Menas era o nome de uma exposição aberta ao público no ano passado, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. As paredes do museu exibiam variações da língua portuguesa falada em diversas regiões do país, além de textos que explicitavam as grandes diferenças entre o idioma praticado nas ruas e a norma culta – aquela apresentada nos livros de gramática. A exposição procurava demonstrar que há vários contextos de fala e que o errado em um contexto não necessariamente impede que as pessoas se comuniquem de maneira bem sucedida em outros.

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Por Uma Vida Melhor é o nome de um livro didático, a esta altura já de triste fama, escrito a várias mãos sob coordenação da ONG Ação Educativa, adotado pelo Ministério da Educação (MEC) e distribuído a 4.236 cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA) espalhados pelo país. A certa altura, baseado na eventual pergunta de um aluno a seu professor, o livro afirma: “Eu posso falar ‘os livro’? Claro que pode.” Depois de ensinar a seus alunos que eles podem falar errado, o professor é orientado a apontar as “sanções” a que o estudante está sujeito se utilizar uma construção como “os peixe”: “Fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico.” E emenda: “A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio.”

Tanto a exposição quanto o livro representam uma linha de pensamento nascida há 50 anos, fruto do trabalho do americano William Labov, da Universidade da Pennsylvania, que se debruçou sobre as variedades populares do inglês utilizadas em diferentes regiões e por grupos sociais distintos. A sociolinguística – esse é o nome da disciplina – busca uma abordagem científica das línguas, mais descritiva do que normativa. Ela procura entender cada variação de um idioma, e por isso passa ao largo das questões de certo e errado. A sociolinguística pode render uma mostra informativa – e divertida – como Menas. Ela também leva estudantes universitários de português e pedagogia a reflexões importantes sobre a maneira como as pessoas utilizam a linguagem em diferentes lugares e estratos sociais. Mas, utilizada de maneira torta num livro didático como Por Uma Vida Melhor, e misturada a um blá-blá-blá ideológico sobre “preconceito” e “classes dominantes”, essa abordagem é nada menos que um desatino, propagando a ideia de que a norma culta e a educação formal são fardos aos quais as pessoas devem ser curvar por imposição social, e não pelos benefícios que elas propiciam.

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Os estudos de Labov começaram a influenciar pesquisadores brasileiros no início dos anos 1970, quando estudos de sociolinguística surgiram nas principais universidades do Brasil. O primeiro grande projeto produzido por essas instituições, entre elas a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi o Nurc, sigla de Norma Urbana Culta. Munidos de gravadores portáteis, pesquisadores foram às ruas de cinco capitais para registrar pela primeira vez a fala de brasileiros e, a partir daí, deduzir as normas cultas do português falado. Para isso, foram ouvidos jovens filhos de pais brasileiros, com ensino superior completo. Concluiu-se que até mesmo entre os “estudados” a fala divergia da norma culta.

A teoria sociolinguística começou a se infiltrar no sistema educacional brasileiro a partir da década de 1980. A influência coincide com a expansão do ensino básico, uma das causas da queda da qualidade do sistema público, segundo vários especialistas. Em 1988, a nova Constituição da República tornou lei a universalização do ensino básico: a partir de então, toda criança deveria frequentar a escola. As instituições, habituadas a letrar uma parcela da população oriunda de famílias instruídas, viram chegar aos bancos escolares filhos de famílias pobres e de baixo nível de escolarização formal. Naturalmente, desconheciam as regras básicas da gramática.

Ataliba de Castilho, linguista da Universidade de São Paulo (USP) e um dos defensores das teorias da sociolinguística, resume o que acontecer a seguir: “Foi levada para a sala de aula a ideia de que o professor se aproxima do aluno e estimula seu aprendizado na medida em que é capaz de entender e aceitar as variações linguísticas presentes em cada discurso.” Por isso, insistir que frases como “nós pega peixe” estão erradas seria contraproducente, servindo apenas para afastar ainda mais o professor do aluno. “É preciso esclarecer, porém, que a sociolinguística não defende que a norma culta seja renegada pelas escolas. É dever da escola ensinar a variante culta escrita”, diz Castilho, autor da Gramática do Português Falado, obra que normatiza a variante oral culta da língua portuguesa. A obra, a maior gramática da variante oral de uma língua já feita, levou duas décadas para ser concluída e contou com a colaboração de cerca de meia centena de estudiosos, todos coordenados pelo linguista da USP.

Finalmente, em 1998, as ideias apresentadas por Labov e desenvolvidas por pesquisadores brasileiros foram incorporadas pelo estado, ao serem incluídas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), do MEC, um conjunto de diretrizes que pretende orientar professores e autores de material didático – daí, nasceu, por exemplo, um instrumento de desensino como Por Uma Vida Melhor. Era apenas a versão nacional de uma prática que já se fazia em nível estadual desde a década anterior. Em São Paulo, na década de 1980, o governador Franco Motoro já havia convidado docentes da Unicamp a orientar professores paulistas. O objetivo: fazer com que os docentes aceitassem as variações presentes na fala de seus alunos. Atualmente, inúmeros estudos com esse viés orientam centros de pesquisa pelo país, entre elas a Universidade Federal da Bahia (UFBA), responsável pela elaboração de um Atlas Linguístico do Brasil, e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que capitaneia o Censo Linguístico, que procura refazer os passos do Nurc, registrando tanto a norma culta quanto a popular.

Que o assunto seja tema de pesquisa acadêmica e subsídio para a formação de professores não se discute. Choca, contudo, que chegue aos ouvidos de estudantes que vão à escola justamente para aprender aquilo que a rua não lhes oferece: a norma culta, com toda a riqueza que ela oferece. “Esse não é um tema que deve ser levado para a sala de aula, seja para crianças, seja para adultos em fase de alfabetização”, diz Miriam Paura, educadora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). “A escola tem por objetivo fazer a instrução correta. É dever do professor explicar aos alunos as diferenças entre o falar e o escrever, entre a norma culta e as variações populares. Mas explicar não é dizer que tal forma deva ser reproduzida.”

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Não bastasse confundirem os alunos, as aulas para desaprender também podem confundir o professor. Ninguém mais ignora o fato de que a qualidade do corpo docente brasileiro é irregular. “Um docente despreparado pode interpretar tal livro de maneira equivocada”, diz Paura. É possível que um mestre bem qualificado entenda que deve-se deixar o desensinamento de lado e ater-se às regras gramaticais apresentadas no livro – sim, no restante da obra, as normas estão lá. Outro professor menos informado, porém, pode ficar em dúvida sobre a pertinência de corrigir seus alunos, e a correção é um processo fundamental do aprendizado. “Saber até onde a norma popular é aceitável é um tema delicado e exige preparo por parte do profissional. Tudo isso faz com que um material didático que dê margem para múltiplas interpretações seja um risco.”

Neste ano, todo o Brasil sofrerá com a falta de mão de obra qualificada, informa pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Alguns brasileiros, contudo, sofrerão mais. “Quem não domina a norma culta do português tem dificuldades para brigar por uma vaga, seja ela de que tipo for”, afirma Antônio Carminhato, presidente do Grupo Soma de recursos humanos. Outra pesquisa, divulgada pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI), revelou que a falta de qualificação atinge sete em cada dez empresas consultadas. A solução do problema, segundo a entidade, é simples: “A educação básica é a base do processo da formação de profissionais qualificados.” Vale para a indústria, para o comércio, para a agricultura… É difícil supor, portanto, que o papel da norma culta seja apenas retirar o brasileiro da alça de mira do preconceito. No século XXI, frequenta-se a escola e aprende-se o que é correto para deixar o Brasil do século XIX para trás e ingressar no mundo moderno, complexo e exigente.

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