Lembranças de uma tarde em Nova Orleans
A morte de Gregg Allman, guitarrista, tecladista e líder da Allman Brothers Band, faz o colunista se lembrar de uma autêntica aula de southern rock
A primeira – e infelizmente, a única – vez que assisti a Allman Brothers Band foi em 25 de abril de 2010, em Nova Orleans. Eles eram uma das atrações principais do festival de jazz da cidade, que trazia também a dupla Simon & Garfunkel, os Black Crowes, o jazzista Allen Toussaint e Levon Helm, ex-baterista de The Band. Foi um massacre de duas horas e meia. Volume no máximo, dois bateristas, uma das principais duplas de guitarristas da atualidade – Derek Trucks e Warren Haynes, substitutos de Duane Allman e Dickey Bets – e tudo que você gostaria de escutar numa performance dos reis do southern rock: Statesboro Blues, Midnight Rider, Melissa, One Way Out e, claro, Whippin’ Post, a melhor canção de seu repertório. Gregg Allman, tecladista, vocalista e líder dos Allman Brothers, se postava no lado direito do palco e comandava a banda com sua lendária expressão de poucos amigos. Esse momento foi tão emblemático para mim – até porque em Nova Orleans fiz uma das melhores reportagens da minha vida – que ressurgiu num determinado ponto do meu cérebro após o anúncio da morte de Allman, no dia 27 de maio, de causas não reveladas. Tinha 69 anos e um passado marcado por excesso de álcool e drogas (heroína, em particular), além de um transplante de fígado. A notícia de seu falecimento tem rendido homenagens, que vão da Tedeschi Trucks Band, herdeiros naturais da Allman Brothers Band, ao cantor country Eric Church. Todas, evidentemente, merecidas: Gregg Allman foi um gigante.
https://www.youtube.com/watch?v=TlLe2HUraLc
Os Allman Brothers são os legítimos representantes do southern rock, um termo que Gregg simplesmente detestava (ele dizia, com certa razão, que o rock era essencialmente sulista porque nasceu naquela região dos Estados Unidos). O grupo criado por ele e pelo irmão, o soberbo guitarrista Duane Allman, tinha como característica a combinação de blues, soul, country e jazz em doses exatas e muita improvisação. O ponto alto da receita bem urdida pelos irmãos Allman está em Live at Filmore East, álbum de 1971, considerado por muitos como o melhor ao vivo de todos os tempos. E aí entra Whippin’ Post, com uma explosão de solos de Duane e Dickey Betts e uma das letras mais blue da história (na qual, basicamente, Gregg compara a dor de sofrer nas mãos de uma mulher com a de estar preso num poste de açoitamento). Duane também entrou para a história por popularizar um vidrinho de remédio chamado Coricidin como slide de guitarra – o pioneiro foi Jesse Ed Davis, guitarrista da banda do bluesman Taj Mahal. Embora tenha um bom número de discos de estúdio, o grupo rendia melhor ao vivo, onde as composições se transformam em exercícios de virtuosismo. Ah, sim, os Allman Brothers peitaram o racismo reinante na América sulista – ainda mais na década de 60 – ao incluir em sua formação um baterista afro-americano, Jay Joahnnie “Jaimoe” Johanson.
https://www.youtube.com/watch?v=22MRGWnPPIU
Gregg Allman soube ainda superar as adversidades que lhe foram impostas. Quando tinha dois anos, o pai foi assassinado a tiros por um caronista um dia depois do Natal de 1949; em 1971, Duane morreu aos 24 anos de idade num acidente de moto; um ano depois, o baixista Berry Oakley também morreu ao colidir sua motocicleta com a traseira de um ônibus, a poucas quadras de distância de onde Duane havia morrido; em 24 de janeiro de 2017, o baterista Butch Trucks se suicidou na frente da mulher. Gregg, por seu turno, se submeteu a um transplante de fígado dois meses depois da apresentação dos Allman em Nova Orleans. Seis anos depois, no entanto, ele sofreu uma pneumonia que por pouco não lhe tirou de combate. Sua carreira solo, em paralelo ao trabalho do grupo, é feita de discos belíssimos como Laid Back, de 1973 (com direito a uma versão linda de Midnight Rider, da Allman Brothers Band) e Low Country Blues (2011), uma aula de como recriar clássicos desse gênero americano.
A Allman Brothers Band encerrou suas atividades em setembro de 2014, após concorridas apresentações no Beacon Theater, em Nova York, que virou uma espécie de quartel general do grupo. Uma das justificativas para o término do grupo está no desejo de Warren Haynes e Dereck Trucks se dedicarem mais aos seus projetos pessoais – o Gov’t Mule, no caso de Haynes, e a Tedeschi Trucks Band, no qual Derek comanda um supergrupo ao lado da mulher, a cantora e guitarrista Susan Tedeschi. Os fãs do grupo, no entanto, nunca acreditaram realmente em seu fim definitivo. Afinal, a banda foi remontada tantas vezes que poderia ressurgir com outros talentos da guitarra. Mas a morte do tecladista coloca um fim definitivo num dos principais talentos do rock americano dos últimos 50 anos. Por mais que o southern rock esteja presente – seja nos filhotes da Allman Brothers Band ou em grupos como Widespread Panic e Hard Working Americans –, a morte de Gregg Allman será sempre sentida por quem já teve o privilégio de assistir a um de seus shows. E eu volto àquela maravilhosa tarde em Nova Orleans…