Pergunta a Chico Buarque: “Seria a angústia da influência uma frescura?”
A coisa se deu assim. Estávamos todos na praia no dia 31 de dezembro, curtindo o vai-e-vem das caipirinhas e das ondas. Ali presentes a minha família e um grupo de amigos, todos jornalistas – só coincidência: não sou do tipo que se junta em corporação de ofício. Num grupo grande, vocês sabem, fala-se sobre […]
A coisa se deu assim. Estávamos todos na praia no dia 31 de dezembro, curtindo o vai-e-vem das caipirinhas e das ondas. Ali presentes a minha família e um grupo de amigos, todos jornalistas – só coincidência: não sou do tipo que se junta em corporação de ofício. Num grupo grande, vocês sabem, fala-se sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo, sem compromisso – e assim são as melhores conversas. Um pouquinho de política, de literatura, de irrelevâncias dessa vida besta… Eu até já havia declamado Drummond e Mário Faustino, para certo constrangimento das minhas filhas. Nem acho que fiz feio… Mas vocês sabem: há uma fase em que os adolescentes gostariam que os pais fossem mudos, hehe… Confessarão algum orgulho da origem, se o tiverem, só na vida adulta. É do jogo. É assim que se cresce. A parte mais dolorosamente terna do amor vem sempre depois, como memória. A saudade são as vestes ocas.
Vai onda, volta onda, alguém falou do Prêmio Jabuti, para protesto de um dos amigos presentes: “Eu quero que o Jabuti se exploda”. O verbo foi outro, mas faltam aquela praia, aquele céu, aquelas caipirinhas, para que seja publicável aqui. E eis que Chico Buarque cai na roda, um bom compositor, coisa e tal, mas romancista, esperem aí… Havia consenso ali a respeito. Até confessei: “Ele tem coisa legal. Gosto de algumas músicas”.
“Cite uma”, desafiou alguém. Bem, eu já havia declamado mesmo, né? Por que não cantarolar?
“Leva o vulto teu
que a saudade é o revés de um parto,
a saudade é arrumar o quarto
do filho que já morreu.”
– Essa imagem é inegavelmente bonita!
– Opa! Isso e Shakespeare, não Chico!
Quem falava? Era Carlos Marchi. Sou um leitor bem razoável do bardo e até sei uma coisinha ou outra “de cabeça”, como se diz em Dois Córregos. Mas essa havia me escapado. Na verdade, eu não havia lido – agora já li – a peça “Vida e Morte do Rei João”, ou simplesmente “Rei João”.
– É Shakespeare?
– É, sim!
– Chico plagiou Shakespeare?
– Não sei, não estou dizendo isso. Mas essa imagem que associa a saudade à ausência do filho morto, isso é da peça Rei João.
– Não sabia!
– Há uma biografia de Shakespeare de Bill Bryson, despretensiosa de tudo, mas muito empolgante. José Rubens Siqueira faz uma bela tradução do trecho. Vou te mandar depois.
E o jornallista Carlos Marchi cumpriu a promessa. Está na cena 4, 3º Ato. Constança diz sobre o filho morto a Felipe e Pandolfo:
“Grief fills the room up of my absent child,
Lies in his bed, walks up and down with me,
Puts on his pretty looks, repeats his words,
Remembers me of all his gracious parts,
Stuffs out his vacant garments with his form.”
Na versão de Siqueira:
“Dor enche o quarto de meu filho ausente,
deita em sua cama, anda a meu lado,
sua graça assume, sua fala repete,
me faz lembrar todos os seus encantos,
preenche as roupas ocas com sua forma.”
Em suma, é o “revés de um parto” (um bom achado, sem dúvida); é arrumar o quarto do filho que já morreu.
Sim, caro internauta, a leitura dos clássicos sempre põe em perspectiva os autores modernos e contemporâneos. Até com alguns monstros sagrados foi assim. Camões deve muito a Petrarca, por exemplo – às vezes, é a mesma imagem, vertida do italiano para o português. Mas, nesse caso, era coisa clara, admitida, sabida. Já o Chico Shakespeariano certamente é pista a ser ainda investigada. Convenham: a imagem é rigorosamente a mesma!
Como disse um amigo, talvez “uma pesquisa sobre o belo fraseado do sambista possa dar samba”, não é mesmo? Ok. Chico não vai devolver o Jabuti. Então faço outro apelo, digamos, mais poético: “Chico, devolve ‘Pedaço de mim’ pro Shakespeare!” Ou, então, dê um pé no traseiro de Harold Bloom e demonstre que esse papo de “angústia da influência” é pura frescura.