Apertem os cintos, argentinos. A bruxa está solta
Tudo volta ao normal: estabilidade pós-eleitoral acaba, Cristina desafia juiz e Macri enfrenta encrencas
Uma pessoa que chefiou o governo está sendo processada por corrupção, desafia a justiça e infla o número de militantes que, embora apaixonados, foram em quantidade bem inferior ao esperado para apoiá-la em depoimento ao juiz encarregado do caso. Rufam os bumbos.
O novo presidente teve que implantar medidas impopulares, obrigatórias no começo do governo para instaurar um mínimo de racionalidade econômica. A inflação resiste e ele ainda está enrolado com um certo paraíso fiscal. A oposição, que até recentemente era governo, faz de tudo para transformar sua vida num inferno.
Todos sabem, a essa altura, que estamos falando da Argentina. As similaridades, presentes ou futuras, decorrem de nossos processos históricos parecidos, mas sempre é bom lembrar que a Argentina é como um Brasil que toma anabolizantes.
O que aqui se dilui, lá se concentra. A começar, porque Buenos Aires é São Paulo, Rio e Brasília ao mesmo tempo. Sem contar as diferenças entre as narrativas nacionais. Pensem em tango e samba, ambos os ritmos maravilhosos espelhos das duas identidades.
Envolta numa dramática capa de chuva e nas habituais camadas de maquiagem, Cristina enfiou as unhas pontudas no juiz Claudio Bonadio, que havia marcado o depoimento dela num caso de fraude contra os cofres nacionais, e arrancou vários nacos.
Em lugar de responder a perguntas, ex-presidente, leu um discurso no qual desafiou a autoridade jurídica de Bonadio e se comparou, com modéstia habitual, a Bernardo Yrygoyen, politico e diplomata do século XIX, e a Juan Domingo Perón, o herói-vilão que continua a sugar o inconsciente coletivo argentino.
Militantes kirchneristas, que haviam assumido o controle de Comodoro Py, uma cidadezinha do interior da província de Buenos Aires, aplaudiram a ex-presidente e insultaram o juiz. O caso envolve manobras com a taxa de cambio que causaram prejuízo de 3,4 bilhões de dólares ao país.
É um dos vários processos por corrupção contra integrantes do governo Kirchner. Ou simplesmente K, como dizem os argentinos. Entre eles, o ex-ministro do Planejamento Julio de Vido, acusado de lavagem de dinheiro e obras superfaturadas. De Vido declarou-se vitima de “perseguição política”, jurando que “jamais cobrou nenhum retorno”. O instituto da delação premiada já começa se firmar no judiciário argentino, expondo a inutilidade de declarações do tipo.
A estreia de Mauricio Macri na presidência, auspiciosa como todo começo de governo, já enfrenta a dureza dos fatos. ele também está sob tensão desde que seu nome apareceu em empresas criadas pela família, uma das mais ricas da Argentina, em paraísos fiscais administrados pelo notório escritório do Panamá, o Mossack Fonseca. Recentemente, cometeu vários lapsos de linguagem, incluindo dizer que seu governo estava “fazendo o mínimo possível” para administrar um problema que afeta a população.
Trocar máximo por mínimo é uma das menores encrencas de Macri. Quem não sabe administrar tensão não pode ser presidente de nada, muito menos de um país politicamente tempestuoso como a Argentina.
A volta de Cristina Kirchner à linha de frente da política, depois de 100 dias trancada em seu refúgio na Patagônia, só vai tornar as coisas mais interessantes. Em outros países, ela poderia sair presa por desrespeito à autoridade de um juiz. Não é impossível que isso venha a acontecer, com o devido processo jurídico.
De alguma maneira, hoje o Brasil é a Argentina amanhã. Como sempre, os papéis podem se inverter.
Correção: Comodoro Py, tal como mencionado, é uma rua de Buenos Aires onde ficam vários tribunais de justiça. Perdão aos argentinos em geral e à memória do bravo comodoro Luis Py, homenageado em várias localidades.