A moça tenta pular de uma ponte; é impedida e levada para o hospital, onde é identificada como Prairie Johnson, desaparecida há mais de sete anos. Prairie chama a si própria de O.A. (e vai demorar até você entender o que isso significa). Diz que não estava tentando se suicidar, mas sim voltar para o lugar de onde veio. Tem cicatrizes estranhas nas costas, não quer comentar nada a respeito do período do seu sequestro com os pais adotivos nem com o FBI – e, o mais estranho, tendo sido cega desde a infância, agora enxerga normalmente. Exceto no sentido figurado: Prairie tem uma visão peculiar do mundo. Fala de coisas aparentemente viajandonas, como um certo “eu invisível”, e faz um esforço calculado para não se ajustar à vida na casa dos pais. Estes, um casal já meio idoso (Alice Krige e Scott Wilson, o Hershel de The Walking Dead) que adotou Prairie quando ela tinha seus 7 anos, parecem estar de coração partido. Prairie desde cedo manifestou problemas mentais – alucinações e desconexão com a realidade, segundo os psiquiatras –, e no entender dos pais está agora em um novo surto psicótico. Mas será mesmo? Não será possível que Prairie tenha algo de especial que nunca foi compreendido?
Uma dúvida, quando bem sustentada e com os dois lados da questão igualmente bem defendidos, pode ser um fio condutor poderoso para uma série. E esse é um requisito que The O.A., da Netflix, cumpre com honras: criada e escrita por por Zal Batmanglij e Brit Marling (que interpreta Prairie), The O.A. mais convincente se torna quanto mais viaja na maionese, porque mais possíveis parecem as suas alternativas – a loucura e a explicação, digamos, metafísica. Prairie diz ter uma missão urgente a cumprir, e recruta cinco voluntários para ajudá-la (no quê? Eles não sabem). Todas as noites, em uma casa cuja construção foi abandonada, ela se reúne com essas pessoas tristes, problemáticas ou desconfortáveis que encontraram o apelo dela no YouTube. Quatro são adolescentes da escola local – um rapaz com sérios problemas de agressividade, um aluno exemplar que tem uma vida familiar terrível, um garoto transsexual e um menino órfão. A última a se juntar ao grupo é uma professora de meia-idade derrotada e solitária, que está em luto pelo irmão gêmeo (Phyllis Smith, de The Office, maravilhosa). Sentados num meio-círculo, à luz de velas, eles ouvem Prairie contar sua história (seja ela real ou imaginada), desde seu nascimento na Rússia até os anos passados no seu estranhíssimo cativeiro, sob as ordens de um autoproclamado cientista que tem obsessão por experiências de quase-morte (Jason Isaacs).
Seja como a manifestação dolorosa de um transtorno mental, seja como uma realidade alternativa possível, a história de Prairie é fascinante. É, acima de tudo, tão cheia de lances inesperados, de guinadas imprevistas e de mudanças de marcha, que é impraticável ao espectador adivinhar para onde ele está sendo levado. De episódio em episódio (são oito, e ainda não há garantia de uma segunda temporada), Zal e Brit esticam os limites da credulidade do público até o ponto da provocação. Eu nunca acreditei que engoliria uma trama em que uma coreografia com cara de exercício de expressão corporal de grupo de teatro da faculdade tem um papel preponderante. Mas engoli, e em dado momento positivamente me arrepiei com a coisa.
Brit Marling ficou conhecida como atriz/roteirista com uma ficção científica curiosa, A Outra Terra (2011), na qual – como diz o título – o planeta ganha um duplo visível nos céus, uma ocorrência que afeta profundamente a vida de todos. No mesmo ano, ela começou a parceria com Zal Batmanglij, no longa A Seita Misteriosa. A colaboração prosseguiu com O Sistema (2013) antes de desaguar nesta síntese de temas recorrentes no trabalho de um e de outro: pessoas que voluntária ou involuntariamente têm um “eu” alternativo, gente que acredita ter experiências com dimensões além das conhecidas, a lógica própria do pensamento místico e a força propulsiva que ele pode adquirir – e a perplexidade e/ou hostilidade que essas crenças excêntricas provocam em quem toma contato com elas.
Como atriz, Brit é sem dúvida a melhor pessoa para vender com veracidade essa tensão entre o racional e o aparentemente insensato. Em The O.A., Prairie é ao mesmo tempo de uma fragilidade penosa e de um carisma febril; ela acredita com tanta convicção no que diz que os seus cinco acólitos – e possivelmente o espectador – acabam acreditando também, com fervor. E ajuda muito, também, que ela e Batmanglij sejam roteiristas tão dedicados. Em episódios que às vezes duram até 70 minutos, e outras vezes mal passam dos 30 minutos, eles desenvolvem criteriosamente cada um dos personagens, sem se alongar, mas com mira certeira para o que importa saber sobre cada um deles.
E aí vem a controvérsia do desfecho: nos últimos 15 minutos do último episódio, a coisa toma um rumo que a) alguns acham atordoante b) outros acham decepcionante. Eu fico no primeiro grupo. Mas, para ganhar o direito de decidir, você tem antes que deixar que os 7 primeiros episódios e ¾ cheguem até você, no ritmo deles, e com tudo que eles têm de insólito.