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Por Coluna
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O gênio voador

Santos Dumont, cujo pioneirismo na aviação os americanos contestaram após a réplica do seu 14-Bis decolar na abertura das Olimpíadas 2016, sabia comer bem

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 30 jul 2020, 22h03 - Publicado em 22 ago 2016, 18h02

Uma multidão aplaudiu a réplica do 14-Bis  quando ela voou espetacularmente na abertura das Olimpíadas 2016, no Maracanã, Rio de Janeiro. Outros tantos espectadores deliraram com a repetição da homenagem no encerramento dos jogos. Cento e dez anos antes, pilotando o modelo original do 14-Bis, o brasileiro Alberto Santos Dumont (1873-1932) se tornara o primeiro homem a fazer um aparelho mais pesado do que o ar decolar e pousar por meios próprios, sustentado por asas, com um motor a gasolina de 50 cavalos. Foi em Paris e a numerosa plateia reunida para assisti-lo também ficou extasiada com a demonstração pública.

SANTOS DUMONT - Le Petit Journal

Le Petit Journal, de Paris, noticia o sucesso do voo pioneiro do 14-Bis

Só os americanos não gostaram de ver a réplica do 14-Bis na abertura das Olimpíadas 2016 e o fato de o Brasil reiterar ao mundo o pioneirismo de Santos Dumont. Criticaram a homenagem na imprensa e redes sociais. Atribuem a paternidade da aviação aos seus conterrâneos Orville e Wilbur Wright, dois irmãos mecânicos de bicicleta, e negam o primado de Santos Dumont. Três anos antes de o 14-Bis decolar e pousar com independência em Paris, a dupla americana fez um voo descendente, do alto de uma colina, a bordo do Flyer I, no interior da Carolina do Norte.

O aeroplano dispunha de motor com 12 cavalos, asas ligeiramente inclinadas para baixo e carecia da ajuda do vento. Uma história não comprovada garante ter sido catapultado. Cinco pessoas testemunharam a cena, que os irmãos americanos relataram ao pai, em telegrama no qual pediam para comunicá-la à imprensa.

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Santos Dumont mudou para Paris em 1892. A decisão foi apoiada por seu pai, Henrique Dumont, engenheiro formado na França, que virou abonado fazendeiro de café. O filho partiu para estudar física, química, engenharia mecânica, elétrica e literalmente dar asas à imaginação. Entre 1898 e 1909, projetou, construiu e testou mais de vinte inventos, inclusive o 14-Bis e o Demoiselle, de 1907, do qual foram construídas umas quarenta unidades.

Magro, esquisito e famoso, ele aproveitou a vida em Paris, inclusive à mesa. Sabia comer bem e frequentava o Maxim’s, o elegante restaurante da Rue Royale, número 3, no centro da cidade. Segundo o americano Paul Hoffman, no livro “Asas da Loucura” (Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2004), teria sido um dos primeiros clientes do restaurante que foi um tipo de santuário da Belle Époque, o período de efervescência, inovações artísticas, intelectuais, sociais e de paz entre as nações, vivido pela Europa entre o final do século 19 e o início da Primeira Guerra Mundial.

Santos Dumont conviveu no Masxim’s com estrelas luzidias, como o engenheiro Gustave Eiffel, que participou da construção da Torre Eiffel, símbolo de Paris, e da Estátua da Liberdade, em Nova York; o joalheiro Louis Cartier, que lhe criou sob encomenda um dos primeiros relógios de pulso do mundo, para o inventor não precisar tirar a mão do comando, durante o voo; e o editor americano James Gordon Bennett, do New York Herald, que mandou um repórter cobrir as peripécias aéreas de Santos Dumont, contribuindo para torná-lo celebridade mundial.

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SANTOS DUMONT

Santos Dumont: o cabelo repartido ao meio era ousado na época

No mesmo restaurante, conheceu o caricaturista Sem, pseudônimo de George Goursat, companhia inseparável no ano de 1903, seu clone voluntário. O artista francês passou a andar com o inventor vestido de maneira idêntica a ele. Santos Dumont primava pelo exotismo elegante. Tinha nos dedos uma coleção de anéis, uma pulseira de ouro sob a manga da camisa e repartia o cabelo ao meio, na época exclusividades femininas, além de exibir uma pérola ou alfinete de ouro na gravata e uma flor na lapela.

Usava terno escuro, com listras verticais, colarinho alto e duro, para alongar o pescoço,  chapéu de copa elevada e aba ondulada, sapato de salto alto e disfarçado. Medindo cerca de 1,60 metro, demonstrava complexo da estatura e se incomodava quando os jornais franceses o apelidavam de Petit Santos. Chamava a atenção das pessoas por onde andasse, porém não dava a mínima para os mexericos a respeito da sua vida privada.

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O Maxim’s era frequentado pela elite internacional. Jovens, adultos e velhos, milionários da Europa, Ásia e Américas, plebeus e nobres, incluindo príncipes e reis, que torravam fortunas em farras, jogos e compras de luxo na cidade, saboreavam boa  comida  e  brancos ou tintos magníficos na companhia de mulheres bonitas, pois o elegante restaurante também servia de ponto de encontros e acertos amorosos.

Impossível contar o número de relacionamentos agenciados por Madame Pi-Pi, em troca de gorjeta. A senhora que tomava conta dos toaletes intermediava mensagens entre as pessoas que se interessavam umas pelas outras. As mulheres do Maxim’s eram famosas pela disponibilidade. Entre elas se destacava a cortesã Bella Otero, amante de Guillerme II da Alemanha, Nicolau II de Rússia, Leopoldo II da Bélgica, Alfonso XIII da Espanha, Eduardo VII do Reino Unido etc. etc.; a colega Emilienne d’Alençon, que amealhou fortunas, mas perdeu tudo em jogos de azar; e a idem Liane de Pougy, que acabaria deixando o “demi-monde” para casar com um príncipe romeno e, enviuvando, virou freira dominicana.

O restaurante funcionava apenas à noite. Abria às 17 horas para os aperitivos, servia o jantar das 20 às 22 horas. A ceia entrava na madrugada. Santos Dumont jamais chegava cedo. Sentava-se sempre na mesma mesa, em um dos cantos do salão principal, de costas para a parede, sozinho ou acompanhado. Apreciava grandes vinhos franceses, especialmente os bordeaux Lafite Rothschild, Latour, Margaux e Haut Brion; e o melhor champagne da adega, como por exemplo o Cristal, criado para o czar Alexandre II, soberano da Rússia entre 1855 e 1881.

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Examinava com calma o cardápio do Maxim’s, como se não o conhecesse e escolhia um ou dois pratos. Havia opções apetitosas: ostras e mariscos da Bretanha; linguado ao conhaque; petit poulet (franguinho) dourado na caçarola de ferro; terrina de pato; fígado de vitelo ao Porto; gigot d’agneau (pernil de cordeiro) com feijão branco; pudim de farinha de trigo misturada ao pão dormido, rum, manteiga, uva passa e especiarias; sorvete de baunilha. Nos dias de voar, o inventor pedia ao Maxim’s um almoço especial que pudesse saborear sem protocolos. Continha ovos cozidos, rosbife ou frango, fruta ou sorvete, obviamente derretido.

Santos Dumont preferia comer fora, embora tivesse um apartamento luxuoso na rua Washington, número 9, esquina do Champs-Elysées, perto do Arco do Triunfo, cuidado por empregados de superior qualificação  profissional. Às vezes, entretanto, dava jantares elegantes para pessoas selecionadas em seu vasto portfólio de amigos e admiradores.

SANTOS DUMONT - cardápio

Cardápio do banquete que o Barão de Ataliba Nogueira ofereceu ao inventor

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No prólogo de “Asas da Loucura”, Paul Hoffman descreve uma dessas refeições,  chamando-a de “jantar aéreo”. Entre os presentes estavam o joalheiro Cartier e a princesa Isabel, filha de D. Pedro II, exilada em Paris desde a Proclamação da República no Brasil. Não existia uma lista impressa de convidados, mas igualmente deveriam estar presentes a imperatriz Eugênia, viúva de Napoleão III, e dois ou três Rothschilds, que conheceram Santos Dumont quando uma das suas aeronaves experimentais caiu no jardim da casa da família.

Logo que mudou para a capital francesa, ele introduziu a novidade do “jantar aéreo”, no qual as cadeiras e a mesa ficavam suspensas no ar, mediante cabos de metal presos ao teto. Entretanto, como o teto cedesse e ameaçasse cair com o peso dos convidados, o inventor desenhou e encomendou peças de concepção diferente a um marceneiro de luxo.

Na refeição oferecida a Cartier e à Princesa Isabel, em dezembro de 1903, anfitrião e  convidados subiram em uma escada portátil e sentaram em cadeiras com pés longuíssimos, instaladas em volta de uma mesa ainda mais alta. Os empregados sofriam para colocar a comida ali, mantendo a etiqueta e a elegância do serviço provavelmente à francesa. “É para imaginarem a vida numa máquina voadora”, explicou o anfitrião.

Três meses antes, Santos Dumont se encontrava em Campinas, São Paulo, participando de um banquete em salão aristocrático, com móveis convencionais, oferecido a ele pelo Barão de Ataliba Nogueira. Apesar da timidez, o inventor gostava de receber esse tipo de homenagem, a ponto de colocar no bolso os cardápios dos banquetes. Ele morreu no Guarujá, em São Paulo, aos 59 anos de idade. Além de ser gênio do ar, era de um requinte e de uma esquisitice para ninguém botar defeito, muito menos os americanos invejosos da sua proeminência no ar. O Brasil, merecidamente, continua a admirá-lo como Pai da Aviação.

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