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Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
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Heraldo Palmeira: A noite

Muitos anos depois, eu estava conhecendo Londres sem mapa e, ao dobrar uma esquina, fiquei paralisado diante do Big Ben

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 20h41 - Publicado em 11 nov 2017, 12h22

Tudo estava calado ao redor, chegamos ao meio do feriadão, as pessoas viajaram.

Nos feriados, todos correm da cidade e se entregam animados às estradas entupidas, onde se arrastam por horas em engarrafamentos monumentais até cidadezinhas que entram em colapso com tanta gente chegando de fora. As pessoas vivem trocando de estresses.

O tempo mudou de repente. O calor sufocante foi sendo afastado por uma brisa refrescante que virou vento forte nas folhas das árvores, que virou garoa e restou frio. Os prédios ao redor estavam escuros, como se abrigassem apenas as memórias dos seus moradores, que deixaram seus confortos em casa para descansar em desconfortos diversos, improvisados.

Sim, é quase comovente ver a multidão trocando de estresses, se atirando a desconfortos improvisados, porque tudo isso embute o desejo de descobrir a vida, de ser feliz nem que seja por átimos. É assim que é. É a regra do jogo.

Mais cedo, os gritos e as cantigas da torcida no estádio ao longe denunciavam até o placar de um jogo de futebol. Apito final, a multidão desfeita escorrendo por rampas de acesso, ruas, carros, ônibus, trens e metrô. Tabela cumprida, cada qual em busca dos resultados da própria vida.

Os pássaros que fazem farra o dia inteiro estavam calados em seu merecido descanso. A festa que houve numa casa vizinha já virou lembrança, as visitas foram embora deixando o silêncio depois do vozerio de uma dose a mais. Um gato vadio cruzou comigo, indo embora quando eu estava chegando. Só me olhou de longe, com os cuidados normais dos felinos, sem interromper sua caminhada de rei dos becos.

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Os ponteiros que viraram números e marcam as horas digitais nas bugigangas eletrônicas acabaram de avançar uma hora por conta própria, cumprindo o ritual do horário de verão. Peguei com carinho o velho Tissot dos anos sessenta, adiantei e dei corda. Ele e eu não entendemos essa coisa de mexer no tempo, apressar o passo para recuar lá na frente.

Ele e eu estamos juntos há tantos anos… Somos contemporâneos e já temos tempo de sobra para saber que tudo isso leva a lugar nenhum. Ninguém reinventa a roda, os tempos precisos da natureza não carecem de reparos ou melhorias humanas, até porque não temos nada além de presunção para tamanha tarefa.

Afinal, quando começamos a aparecer por aqui, o planeta já girava ao redor do Sol para mudar as horas e passar o tempo, para fazer dia nas horas claras e noite nas horas escuras. E até fazer magia ao oferecer o espetáculo do Sol da meia-noite.

Já se sabe que não há qualquer resultado prático nesse movimento artificial de mexer no tempo, a não ser interferir na vida das pessoas, bagunçar os relógios biológicos. É ruim se sentir roubado no tempo de ficar acordado pela madrugada.

Há muitos anos, uma amiga me pediu para ir buscar o namorado inglês que desembarcaria na manhã seguinte, vindo de Londres. Pura figura de linguagem! O voo do cara chegou às cinco da madruga e estávamos em horário de verão. Ainda escuro, e lá estava eu a postos, pois a querida saíra da cidade e só chegaria no final da noite.

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Chegamos em casa nem havia clareado, já naquele mormaço do verão, e o sujeito, com aspecto de que praticava a religião dos gatos no pouco culto ao banho, foi logo me pedindo um uísque. Era um boa praça e começamos a conversar, misturando meu inglês ruim e o português mais para tupi-guarani dele.

Seguimos ao redor da mesa no nosso café, o meu à base de cafeína, pão, manteiga e que tais, o dele no modelo caubói solitário, em velocidade estonteante. Lá pelas tantas, perguntei por que tinham relação lendária com o tempo, a ponto de o mundo enxergar a pontualidade britânica como valor social global. Ele foi cirúrgico: “Não temos o direito de tomar o tempo de ninguém, pois o tempo perdido é a única coisa impossível de devolver”.

Nunca mais esqueci e, confesso, passei a ser ainda mais pontual desde então. Sempre que percebo que posso me envolver em algum atraso, lembro daquele inglês martelando no meu ouvido “…o tempo perdido é a única coisa impossível de devolver”.

Gosto de lembrar da minha amiga reclamando de enfiar o sujeito debaixo do chuveiro no terceiro dia de dribles e catimbas na entrada do boxe. Ela ficava muito engraçada enfezada: “Tentei mostrar que ele estava nos trópicos e que aqui se costuma tomar um banho por dia, pelo menos. Imagine você, aquela porra daquela calça jeans ficava em pé sozinha quando ele saía de dentro!”, ela desabafou. E completou arrasadora: “Sonhei acordada com a chegada daquele cara e terminei somente com uma memória olfativa. Pense que ele teve coragem de me dizer, com o ar mais natural do mundo, quase se vangloriando, que há quinze dias não trocava de calça!”.

Muitos anos depois, eu estava conhecendo Londres sem mapa e, ao dobrar uma esquina, fiquei paralisado diante do Big Ben. Por alguma generosidade superior, exatamente quando ele começou a badalar o meio-dia em ponto. Por isso, tive a chance de estar presente no momento mais demorado de sua expressão, doze badaladas. Algo simples, mas indescritível. E naquela hora, pontualmente, lembrei do inglês que não gostava de tomar banho. E nem de roubar o tempo de ninguém.

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Engraçado como uma hora roubada do meu tempo desencadeou lembranças de quase trinta anos com um súdito de sua majestade.

No dia seguinte, num estádio mais distante, um cavaleiro do mesmo império, Paul McCartney, estava trilhando o fio condutor da lenda extraordinária que consegue aparecer de vez em quando sem virar arroz de festa. Infelizmente, esse som não chegava até a minha janela, como aqueles gritos mais próximos do futebol do dia anterior.

Mais cedo, durante o café, um jovem casal hóspede da casa ultimava detalhes para seguir direto para a fila, que já era enorme, dos que veriam o show “na pista”, no gramado.

Vieram direto de Minas exclusivamente para isso e a menina deixou claro o que um velho Beatle representa: “Faz dez anos que eu sonho com o dia de ver esse cara. E olhe que eu só tenho dezenove”. Love me do, na mais perfeita tradução.

Já virando a madrugada da segunda, o casalzinho chegou eufórico, a menina beirando a Lua, quase levitando pelo sonho Beatle realizado. Imagine se tivesse respirado os ares dos anos sessenta, quando tudo aconteceu de verdade e a gente testemunhava aquela revolução em 3D!

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Olhei para o velho Tissot e ele deu uma mexidinha no ponteiro dos minutos. Até hoje, continua implacável na tarefa de avançar, avançar… De seguir deixando aquele tempo cada vez mais distante até de quem teve a fortuna de estar nele.

O feriadão foi acabando, gelado, não deu praia. Lá fora, uma garoa insistente, criatura difícil de lidar, impossível de driblar – não dá para passar entre um pingo e outro porque nem há pingos, a água cai nebulizando o espaço, pulverizando o frio até os ossos.

Um trago de café sempre desce bem, acomodando todas as sensações térmicas. É bom não ter rixa entre cafeína e sono. Um privilégio. Enquanto não chegava a hora da minha escuridão particular, Ivan Lins desfilava na tela como iguaria servida aos espanhóis no Festival Internacional de Jazz de San Javier.

Uma boa maneira de aguardar o dia seguinte, onde tudo começa ou apenas recomeça. Ou ameaça para depois terminar igual. Um moto-contínuo do mesmo, de nós, de sempre, da vida, do tempo.

Mesmo com o sobrenatural Paul McCartney àquela hora descansando num hotel da cidade, não tive pudor de me banhar noutras águas: que coisa espetacular é a música brasileira! Pena que o Brasil cada vez mais fale menos a língua dela e o seu próprio idioma.

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Nós vivemos debaixo do pano
Entre espadas e rodas de fogo
Entre luzes e a dança das cores
Somos todos iguais nesta noite
Pelo ensaio diário de um drama
Pelo medo da chuva e da lama
Pelo truque malfeito dos magos
Pelo chicote dos domadores
E o rufar dos tambores
Olha nós outra vez no picadeiro
Vamos entrar mais uma vez…

Tudo caminhava para sossegar a alma, quando caí na besteira de dar uma olhadinha num encontro de Ivan Lins, João Bosco e Gonzalo Rubalcaba. A dinamite estava com pavio aceso e jogou pelos ares meu projeto de sossego, rezas, bênçãos dos seres da madrugada, as batidas do coração.

O momento final, Linha de passe, entrou no quarto como um vendaval. E me tomei de emoção quando vi que aquele monumento musical teve direção geral de um amigo querido que já está lá por cima tacando festa na vida dos anjos – junto com o monstruoso baixista Nico Assumpção, que também estava naquele palco.

Agora fazer o quê? Quando amanheceu e soou o toque de espalhar, já começou com a hora roubada pelo horário de verão. O vai-da-valsa de sempre, rolar a bola com o jogo de cintura que virou regra. Afinal, a vida só presta por isso, pelo drible de corpo para fugir da porrada, pelo ronco da cuíca no meio da batucada. E ela roncou, acredite! Sem raiva e sem fome, desta vez. Mas, roncou bonito! Também, na mão de Marçalzinho, filho de mestre Marçal… teve que roncar.

Trechos de:
Somos todos iguais nesta noite (Ivan Lins-Vítor Martins)

 

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