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Setor elétrico: tempestade perfeita pode desaguar em alta na inflação

A escassez de chuvas, a pandemia de Covid-19 e a falta de planejamento criaram um cenário de alerta

Por Josette Goulart Atualizado em 19 mar 2021, 10h32 - Publicado em 19 mar 2021, 06h00

Na mesma fatídica semana em que anunciou a troca do comando da Petrobras, no mês passado, o presidente Jair Bolsonaro disse que meteria o dedo na energia elétrica, causando expectativas de que poderia interferir de alguma forma nas tarifas do setor. Existe um bom motivo para tal preocupação. Depois dos alimentos no segundo semestre de 2020 e dos combustíveis no começo deste ano, o novo vilão que pressiona para uma alta da inflação promete ser a energia elétrica. Na média, as tarifas para o consumidor comum devem subir 15,5% neste ano, pelas contas da TR Soluções, uma consultoria que acompanha de perto os reajustes feitos pelas distribuidoras de energia.

Os sinais de que uma alta importante vem pela frente começaram a ser sentidos pelo mercado corporativo. As empresas que compram energia no mercado livre, sem preços controlados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), já pagam uma conta muito maior neste início de ano. Diferentemente do setor de combustíveis, que sofre aumentos sucessivos por causa da alta do petróleo no mercado internacional, as tarifas de energia elétrica estão subindo por uma combinação de fatores, dos quais o principal deles advém da própria natureza. Desde outubro do ano passado, as chuvas começaram a rarear, justamente na época do ano em que se inicia o período de aumento do volume de água nos reservatórios das usinas hidrelétricas, com duração até março. Dessa vez, foi registrado o menor nível pluviométrico desde que a série histórica passou a ser aferida, há 91 anos.

Arte mapa energia

Com reservatórios vazios, as hidrelétricas perdem capacidade de geração e a saída é acionar as termelétricas, que em grande parte são movidas a óleo diesel. Tais usinas, entretanto, têm custos de operação muito mais altos e em menos de três meses já geraram encargos de cerca de 4 bilhões de reais. É o equivalente ao custo do ano passado inteiro e um recorde histórico para o período. Algumas indústrias que consomem energia de forma intensiva já viram as contas subir 25% em janeiro, segundo a Associação dos Grandes Consumidores de Energia (Abrace). “Somos hoje o país da energia barata e da conta cara”, critica Paulo Pedrosa, presidente da entidade.

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Por causa do alto custo, o governo recorre ao acionamento das termelétricas apenas em caso de necessidade absoluta. Isso costuma acontecer quando se desenha no horizonte o risco de ocorrer apagões, que têm custos políticos ainda piores do que os advindos da alta das tarifas. É nesse ponto, porém, que está o problema da situação atual. Modelos matemáticos do setor elétrico mostram que, teoricamente, não seria preciso acionar tantas térmicas quanto as que estão em funcionamento hoje. O sistema é composto de usinas diferentes, o que permite iniciar a operação de substituição às hidrelétricas com as unidades de menor custo e só chegar às mais onerosas na fase mais crítica. Com essa abordagem, quase nunca é preciso ligar, por exemplo, a Usina Xavantes, em Goiânia, considerada a mais cara do país. Mas, em janeiro deste ano, colocou-se em operação justamente essa termelétrica, ao custo de produção de 1 695 reais o megawatt por hora (MWh). A título de comparação, a hidrelétrica Belo Monte opera com um custo equivalente a menos de um décimo desse valor, de 119 reais o MWh.

Entre esses dois extremos, existem diversos recursos com custos intermediários que não foram usados pelo governo, principalmente por falta de planejamento. É o caso das usinas térmicas movidas a gás natural liquefeito (GNL), que custam em torno de 300 reais por MWh e acabaram não sendo acionadas por exigirem pelo menos dois meses de preparações, o que inclui a importação do GNL em quantidade suficiente para operá-las. Para piorar a situação, algumas termelétricas mais econômicas do país se encontram em manutenção e incapazes de operar. Com tantos problemas, o saldo atual, de outubro até 15 de março deste ano, é de 7 bilhões de reais em encargos com o uso das usinas térmicas. “Cada 1,5 bilhão de reais significa 1 ponto porcentual a mais na tarifa de energia”, explica Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel.

SOB PRESSÃO - Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia: preços em alta -
SOB PRESSÃO - Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia: preços em alta – (Frederico Brasil/Futura Press)

Durante boa parte do ano passado, o sistema de bandeiras, que aumenta o preço da conta de luz quando há escassez de oferta, foi suspenso em decorrência da pandemia do coronavírus. A medida, justa e correta, visava trazer menor impacto financeiro aos brasileiros afetados pela crise causada pela Covid-19. Porém, com a longa duração da crise sanitária, o represamento dos reajustes se acumulou e deverá ser repassado no futuro próximo. A Associação Brasileira das Distribuidoras de Energia Elétrica (Abradee) estima que esse valor está atualmente em 3 bilhões de reais, o que vem sendo chamado no setor de conta-Covid. Além da seca e dos impactos da Covid-19, a alta do dólar também pressiona as tarifas. É justamente a moeda americana que serve de base aos reajustes da energia gerada em Itaipu, o que impacta em cerca de 10% no preço da eletricidade na Região Sudeste. O consumidor, por sua vez, deverá sentir o baque no bolso entre junho e julho, quando deverão acontecer os reajustes das grandes distribuidoras, como a Enel, que opera em São Paulo, e a Cemig, de Minas Gerais. “É uma conta acumulada que vem desde o ano passado e que vai ser paga agora”, diz o economista Eduardo Correia, da escola de negócios Insper. “E o reajuste se refletirá no preço de tudo, pois aumenta os custos de produção da economia em geral.”

A tempestade perfeita que se aproxima do setor elétrico promete trazer severas preocupações para o presidente Bolsonaro e a equipe econômica. Nas contas que estão nas mãos do ministro da Economia, Paulo Guedes, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que é considerado a inflação oficial, promete superar os 6,7% em junho deste ano, no acumulado de doze meses, tendendo para os 7%. “A inflação não era uma preocupação. Mas passou a ser”, tem repetido o ministro a seus secretários. Não espanta, portanto, que a contínua alta de preços, que era vista como transitória, acabou ganhando um caráter bem mais grave. Na quarta-feira 17, o BC pôs fim a um longo período de recordes de baixa de juros da economia, ao aumentar a taxa Selic em 0,75 ponto porcentual, elevando-a para 2,75% ao ano. Foi a primeira alta dos juros básicos da economia desde 2015. Não fosse a ameaça da inflação, as taxas poderiam seguir em baixa justamente como forma de estimular investimentos nesta fase crítica da pandemia. Agora, não mais. O risco vislumbrado pelos analistas de mercado e integrantes do comitê de política monetária do BC é o que provoca pesadelos em todo economista, a chamada estagflação — combinação temerária de estagnação econômica com inflação. Com a decisão do BC, aumenta a chance de o Brasil manter a meta de inflação prevista para 2021, de 3,75%. Isso se o galope nos preços da energia elétrica e a consequente reação em cadeia não atrapalharem essa equação.

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Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730

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