Os desafios da próxima diretoria do BC após acertado último ato de Campos Neto
Prestes a deixar o posto de comando, o presidente será lembrado pela luta para consolidar a independência da autarquia
No futuro, se alguém quiser compreender a importância do período em que Roberto Campos Neto presidiu o Banco Central (BC), poderá consultar a última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) de 2024, realizada nos dias 10 e 11 de dezembro. A decisão de elevar a taxa Selic em 1 ponto percentual, para 12,25% ao ano, já era esperada por boa parte do mercado. A surpresa do último encontro capitaneado por Campos Neto, que deixa o cargo em 31 de dezembro, foi o alerta do BC de que pode repetir a dose nas próximas duas reuniões, caso a inflação não ceda. Com isso, a Selic chegaria a 14,25% em março de 2025 — algo que não estava no radar dos analistas. “Foi uma decisão duríssima”, resume Paulo Gala, economista-chefe do Banco Master. Gala lembra que essa foi a primeira resolução do Copom após a frustração com o pacote fiscal, que levou o dólar a bater sucessivos recordes acima dos 6 reais. “Não resta dúvida sobre o compromisso do Banco Central de combater a inflação.” Não foi fácil para Campos Neto sustentar esse combate, desde que assumiu a chefia da instituição, em 2019. Ele precisou se dividir entre o controle de preços e outra batalha fundamental: garantir a consolidação da independência formal do BC.
Sancionada em 2021 pelo então presidente Jair Bolsonaro, a Lei Complementar 179/21 assegurou a autonomia legal do BC. Uma vez indicados pelo presidente da República e sabatinados pelo Senado, os diretores da autarquia passaram a cumprir mandatos fixos de quatro anos não coincidentes com o do chefe do Executivo. Eles só podem ser exonerados sob condições específicas — e o mau humor de quem estiver no Palácio do Planalto com a condução da política monetária não é uma delas. O objetivo é garantir que o BC tome as decisões necessárias para cumprir seu único mandato: alcançar a meta de inflação estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional. Antes da lei, o BC era vinculado ao Ministério da Fazenda. Embora houvesse um acordo de cavalheiros para que atuasse com independência, isso não afastava as pressões políticas. Em meados de 2007, por exemplo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então em seu segundo mandato, telefonou para Henrique Meirelles, seu banqueiro central, pedindo que cortasse os juros. Meirelles se recusou e lembrou a Lula que só aceitara o cargo com a condição de que teria autonomia. A lei de 2021 veio para acabar com episódios assim. Coube a Campos Neto ser o primeiro presidente de um Banco Central formalmente autônomo, mas nem por isso sua vida foi tranquila. “Seu período à frente do BC foi bastante difícil por vários fatores”, diz Meirelles. “Além disso, comandar a primeira gestão independente do BC foi uma dificuldade adicional.”
Bolsonaro e seu então ministro da Economia, Paulo Guedes, foram os primeiros a testar quanto Campos Neto defenderia a autonomia recém-conquistada. O primeiro embate ocorreu em torno da própria lei. Em abril de 2021, o então procurador-geral da República, Augusto Aras, declarou que ela era inconstitucional. A posição foi vista pelo mercado como um sinal de que Bolsonaro se arrependera, dado o alinhamento de Aras com o presidente. Na época, veículos de imprensa noticiaram que o ex-capitão admitira a interlocutores, em particular, seu arrependimento. A autonomia só se consolidou, de fato, quando o Supremo Tribunal Federal a validou por um placar de oito votos a dois em agosto daquele ano. Outro teste foi a disparada da inflação. Em 2021, o IPCA, o índice oficial de preços, subiu 10%. Em meados daquele ano, Guedes acusou o Banco Central de não perceber a gravidade da situação. O ministro chegou a afirmar que banqueiros centrais em todo o mundo — incluindo o brasileiro — estavam “dormindo ao volante”. Em contrapartida, o BC criticou o governo por criar pressões inflacionárias ao abandonar reformas estruturais, elevar as despesas e estourar o teto de gastos que vigorava na época. No fim, Guedes reconheceu que Campos Neto “acordou antes” e estava “se movendo mais rápido” que outros banqueiros. A prova foi que, de março de 2021 a agosto de 2022, o BC elevou a taxa Selic de 2% para 13,75% ao ano. Embora necessária, a medida desagradou a Bolsonaro, já que os juros altos não eram um bom cabo eleitoral na corrida pela reeleição.
A mudança de governo não trouxe paz a Campos Neto — muito pelo contrário. Logo nos primeiros meses de seu terceiro mandato, Lula ameaçou rever a autonomia e declarou que Campos Neto deveria conhecer a vida “dos mais miseráveis”. O presidente acusava o banqueiro de falta de isenção e o qualificava como aliado incondicional de Bolsonaro. Em meados de 2023, irritado com a manutenção da Selic em 13,75%, Lula afirmou a uma rádio gaúcha que o BC era comandado por “um cidadão que não entende absolutamente nada do país”. Meses depois, em uma cerimônia em Fortaleza (CE), Lula voltou à carga. “Esse cidadão, se ele conversa com alguém, não é comigo. Ele deve conversar com quem o indicou. E nós sabemos que quem o indicou não fez coisas boas para o país”, disse. A artilharia continuou em 2024. Em junho, o presidente acusou Campos Neto de “trabalhar para prejudicar o país”.
Nas poucas vezes em que se manifestou sobre as críticas, Campos Neto enfatizou o caráter técnico das decisões. Ao participar de um fórum do Banco Central Europeu em julho, ele defendeu que é preciso afastar a “narrativa de que o BC tem sido político”. Os ataques de Lula impressionaram veteranos do mercado. “Essa diretoria recebeu uma pressão nunca vista antes”, diz Luiz Fernando Figueiredo, ex-diretor do BC e presidente do conselho da gestora Jive Mauá. “Se Campos Neto não resistisse e não tomasse decisões técnicas, o Brasil estaria bem pior hoje.” Sua resiliência é destacada pelos agentes financeiros. Para Isaac Sidney, presidente da Febraban, entidade que representa os bancos, o “firme engajamento” de Campos Neto em torno da autonomia do BC ajudou a “colocar o Brasil no mesmo patamar de governança monetária das economias mais avançadas”.
A consolidação da independência é o maior legado de Campos Neto, mas não o único. Ele também acelerou a modernização do sistema financeiro ao apoiar projetos como o Pix, o sistema de pagamento instantâneo que caiu no gosto dos brasileiros. Estimular a competitividade do mercado, permitindo que os clientes acessem melhores produtos financeiros, é a meta do Open Finance, outra iniciativa apoiada por ele. O Drex, a versão digital do real, também avança e permitirá uma revolução nos investimentos e o fim da burocracia em transações como a venda de imóveis. O último ato de Campos Neto à frente do Banco Central foi unir sua diretoria em torno da dura decisão de elevar a Selic para 12,25%, além de sinalizar duas doses de mais 1 ponto nos próximos encontros, no ano que vem. Foi uma mostra eloquente de independência da instituição que, espera-se, seja mantida por seu sucessor, Gabriel Galípolo, a partir de janeiro.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923