Para onde esse dólar vai? Especialistas traçam cenário pouco animador
A despeito das previsões de Guedes, o cenário político instável e as limitações econômicas do país levam a expectativas nada otimistas para futuro do real
De tempos em tempos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, se aventura a arriscar projeções sobre o valor do dólar em relação ao real, uma postura tão audaciosa quanto temerária. Em uma de suas previsões mais célebres, disse, em março do ano passado, que o dólar só chegaria a 5 reais se ele fizesse muita besteira na condução da economia — marca logo atingida, para delícia de seus detratores. A atitude lembrou a muitos a famosa máxima de que as tentativas de acertar as cotações de câmbio servem apenas para humilhar os economistas. Na terça-feira 25, o ministro se sentiu confiante para, em um novo laivo de otimismo, fazer mais uma previsão para a moeda americana. Ao defender a ideia de que o Brasil está barato para os estrangeiros, disse que os “gringos” têm agora a chance de investir no país com o dólar cotado perto de 5,50 reais e depois sair com a moeda a 3 reais, numa trajetória que levaria dois anos, o que significaria embolsar um dinheiro fácil.
A julgar por uma pesquisa feita por VEJA com representantes de cinquenta bancos, corretoras e casas de análises de investimentos, Guedes está sozinho nessa aposta (ao menos, por enquanto). Entre os analistas ouvidos, 86% — a maioria esmagadora — acreditam que o dólar continuará oscilando na casa entre 5 e 6 reais até o fim de 2022. Até mesmo a continuidade da recente e leve tendência de queda da moeda americana é considerada por esses especialistas uma possibilidade menor, com 43% deles acreditando numa alta até o fim de 2022. Entre os que são mais otimistas (embora ninguém tenha falado em algo próximo a 3 reais), cerca de 12% acham que a moeda americana possa cair da casa dos 5 nos próximos meses. Ou seja: se a turma majoritária estiver correta, viveremos durante bastante tempo com um real fraco diante do dólar.
A princípio, o otimismo de Paulo Guedes até se justificaria. O ministro, aliás, já fez previsões um tanto inesperadas que se confirmaram (a eleição de Jair Bolsonaro é apenas uma delas). E, além da intuição ou faro para os movimentos de mercado, há fatores técnicos que sugerem, sim, uma tendência de recuperação do real. Nas últimas semanas, o dólar tem demonstrado uma tendência de queda depois de uma longa ladeira acima. Desde o fim de março, ele caiu 6% diante do real. No aspecto externo, também faria sentido um fluxo de investimentos internacionais num momento de grande liquidez no exterior e de uma retomada da economia no pós-pandemia. A questão, porém, é muito mais complexa e depende de uma miríade de outros fatores.
Um dos mais importantes aspectos é o instável cenário político brasileiro. Na pesquisa de VEJA, 78% dos especialistas acreditam que um dos vetores que mais influenciarão a moeda será a eleição presidencial de 2022. As perspectivas de uma forte polarização entre uma eventual candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, um modelo que não deu certo para o país, e o projeto de reeleição de Jair Bolsonaro, cujo governo não está dando certo até aqui, afugentam o capital e colaboram para a desvalorização do real. Essa influência eleitoral fez bastante estrago em 2002. Naquela ocasião, com a perspectiva de eleição do petista, o dólar rompeu a casa dos 4 reais e obrigou o então candidato a soltar a famosa Carta aos Brasileiros.
Foi fundamental naquele momento o enquadramento da nova gestão aos princípios que norteiam a boa economia. A presença de um banqueiro com larga experiência no Banco Central foi decisiva para que o caldo não entornasse. Diz Henrique Meirelles, que segurou o bastão nessa passagem, sobre a situação atual: “O país gastou muito no ano passado para enfrentar a crise, como tinha de fazer. Agora, seria necessário passar uma mensagem de controle fiscal bastante firme, mas a eleição de 2022 sinaliza o contrário, um aumento no endividamento”. Na opinião do secretário de Fazenda de São Paulo, “as incertezas em relação às despesas públicas levam a uma tendência de manutenção das taxas de câmbio elevadas e à saída de capital estrangeiro”.
O segundo fator de pressão — lembrado por 64% dos que responderam à pesquisa — tem relação com os juros praticados nos Estados Unidos. Se o plano trilionário de estímulo econômico implementado pelo presidente Joe Biden superaquecer a atividade local até o ponto de causar inflação, o banco central americano precisará subir os juros, algo que vai fragilizar ainda mais o real. Afinal, tal medida drenaria recursos de investidores de todo o mundo para os confiáveis títulos públicos americanos, uma vez que eles pagarão prêmio maior. Países emergentes, como o Brasil, sofrerão por trazerem mais riscos para pouca rentabilidade, afugentando investimentos. “A mudança da política econômica nos Estados Unidos vai fazer a moeda americana se valorizar cada vez mais”, aposta Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda.
Em resumo, os brasileiros que sonham com viagens internacionais e compras no exterior para o período pós-pandemia, quando as barreiras de acesso a outros países forem levantadas, não devem nutrir expectativas com cotações mais camaradas. O cenário atual — e, provavelmente, de médio prazo — torna mais distante o retorno do brasileiro ao circuito do turismo e do consumo internacional, que deixou saudades. Nas últimas décadas, as famílias com certo fôlego financeiro se acostumaram a manter reservas em dólar, mesmo sem uma viagem programada, ou simplesmente acompanharam a cotação da moeda americana, enquanto acalentavam planos para um futuro próximo. Nos momentos de baixa da moeda americana, mesmo entre as classes mais baixas, tornou-se comum a compra de passagens para os Estados Unidos e destinos europeus ou a compra de produtos eletrônicos e de alta tecnologia. Essas aspirações eram bastante reais e o sonho foi especialmente palpável em 1994, com o advento do Plano Real e o fim da hiperinflação.
Na época, para que o plano pudesse se estabilizar, o câmbio permaneceu fixo até 1998, com a paridade forçada de 1 real para 1 dólar. Muitas famílias fizeram compras vorazes nos Estados Unidos. Um episódio tornou-se símbolo desse desvario consumista, quando a Seleção Brasileira de Futebol, campeã da Copa do Mundo de 1994, voltou de Los Angeles no chamado “voo da muamba”, em que o avião fretado para a ocasião aterrissou no país com 12 toneladas de bagagem, repleta de artigos esportivos, roupas e eletrônicos, incluindo dezoito televisores. Outro período de farra se deu entre 2008 e 2011, quando o dólar rondou 1,5 real. O mundo vivia o pico de sua fascinação pelos grandes países em desenvolvimento, em especial Brasil, Rússia, Índia e China (os chamados Brics). A entrada de recursos externos era tamanha que as reservas internacionais batiam recordes.
Do mesmo jeito que desce, porém, a moeda americana sobe. A sensação de que os bons dias haviam acabado começou a germinar a partir de 2014, com a crise política e econômica do governo da presidente Dilma Rousseff, que culminaria com o seu impeachment e uma disparada do dólar. Mesmo assim, como que numa celebração final que poderia lembrar a do Baile da Ilha Fiscal, símbolo da queda do Império em 1889, os brasileiros atingiram o pico de gastos no exterior exatamente naquele ano, deixando fora do país 25,6 bilhões de dólares. Em 2019, o consumo em viagens ficou em 17,6 bilhões de dólares, uma queda de 31,3% ante o pico anterior. Com a pandemia, foram apenas 5,4 bilhões de dólares em 2020.
A ideia de que a cotação da moeda americana é preocupação apenas de aspirantes a turistas ou de profissionais de comércio exterior é uma visão absolutamente equivocada. De proprietários de empresa a famílias pobres que consomem arroz, todos somos bastante afetados pelas oscilações da moeda. O impacto mais óbvio é sobre a inflação em produtos importados — como vinho, azeite de oliva e eletrônicos — e alimentos que utilizam matéria-prima do exterior — como o macarrão e o pãozinho francês, produzidos com farinha de trigo vinda de fora.
Mesmo as grandes commodities que o país costuma exportar acabam pesando no bolso do brasileiro, uma vez que são cotadas em dólar. Com o real desvalorizado e os preços em alta devido ao aumento do consumo global, principalmente da China, o produtor brasileiro, obviamente, passa a priorizar a venda para o exterior. “Assim, a oferta para o mercado interno é menor, e o preço sobe. É o caso da carne, por exemplo”, diz o economista André Braz, coordenador do índice de preços ao consumidor do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre). Dos itens que mais subiram entre abril de 2020 e de 2021, a maioria é commodity ou derivado delas. O óleo de soja subiu 82% e as carnes, mais de 30%. O dólar alto também encarece a produção. “Nós importamos mais de 80% dos fertilizantes usados na lavoura e também trazemos muitos insumos de fora, como as máquinas e veículos agrícolas”, diz Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura.
Dessa forma, o dólar alto acaba contaminando toda a economia. Com o aumento do preço que se paga pelo petróleo no mercado internacional, que é cotado na moeda americana, o custo do transporte e de logística acaba encarecendo todos os produtos. Trata-se de uma reação em cadeia. Até mesmo o preço do aluguel acaba sendo afetado de uma forma curiosa. O índice mais usado para o reajuste de contratos residenciais e comerciais é o IGP-M, que tem em sua composição indicadores muito influenciados pelo câmbio. Com isso, em doze meses, ele atingiu 32%, obrigando inquilinos e locatários a buscar a renegociação de seus contratos. “Com a subida de preços, todo mundo fica mais pobre e temos uma pressão inflacionária que provavelmente vai levar a uma alta da taxa de juros”, diz Pedro Chermont, sócio fundador da gestora Leblon Equities. É o que tem acontecido. Neste ano, mesmo com a crise ainda se desenrolando, o Banco Central já começou a aumentar os juros para combater a inflação, medida que diminui os estímulos para a economia.
A razão para o ministro Paulo Guedes acreditar que o período de câmbio sobrevalorizado pode ter fim em breve é que o real se encontra em um desalinhamento histórico em relação ao que seria o seu valor estrutural. É difícil estimá-lo de forma precisa, mas alguns economistas o colocam atualmente na faixa de 4,80 reais. Um estudo da FGV concluiu que a diferença entre as cotações do dólar na pandemia e o seu valor de equilíbrio chegou a superar o de outubro de 2002, já citado nesta reportagem, a maior crise cambial da era do real. A má notícia para Guedes é que a volta para o equilíbrio, naquela ocasião, não foi rápida, mesmo passado o susto da vitória de Lula e seu compromisso em seguir uma linha ortodoxa. “O câmbio só voltou para valores próximos do estrutural três anos depois”, explica Livio Ribeiro, autor do estudo.
A vantagem de uma visão não tão confiante sobre cenários futuros é que uma leve melhora já provoca efeitos positivos. Embora o mercado não esteja muito à vontade com Lula e Bolsonaro, é bem provável que ambos façam sinais ao centro para se eleger. Aliás, os dois se movimentam nessa direção. Lula recentemente posou com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e Bolsonaro conta em seus quadros com nomes como o ministro das Comunicações, Fábio Faria, de discurso moderado. Ou seja: mesmo com todas as promessas de guerra, há espaço para o diálogo. “Esse movimento moderaria eventuais propostas, políticas e a formação da equipe econômica”, avalia Tony Volpon, estrategista-chefe da Wealth High Governance (WHG) e ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central. “Isso tornaria o período eleitoral menos estressante que na eleição de 2018, o que ajudaria na recuperação do real.” Existe a possibilidade também de uma surpresa: o surgimento de um nome de centro que adotasse uma política fiscal responsável, que trabalhasse sem sobressaltos diários e que não testasse os limites institucionais a cada semana. Para os brasileiros que acalentam o sonho de voltar aos tempos de real forte, essa seria uma grande notícia.
Publicado em VEJA de 02 de junho de 2021, edição nº 2740