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O Lobo de Wall Street e outros predadores

Professor da Universidade de Warwick alerta que a concentração e a conectividade do sistema financeiro deveriam ser mais alarmantes que o seu tamanho

Por Robert Skidelsky
14 abr 2014, 08h12

“Que avaliação sobre o estado do capitalismo do século XX!”, ponderou o “palestrante motivacional” Jordan Belfort ao lembrar a sua vida de fraudes, sexo e drogas. Como chefe da corretora Stratton Oakmont, ele desfalcou centenas de milhões de dólares dos investidores no início da década de 1990. Eu assisti ao filme de Martin Scorsese, O Lobo de Wall Street, que despertou a minha curiosidade para ler o livro de memórias do Belfort, que serviu de base para o roteiro. E aprendi muito com ele.

Por exemplo, o esquema fraudulento conhecido como “bump and dump“, que rendeu a Belfort e seus companheiros Strattonites ganhos ilícitos, é mais compreensível no livro do que no filme. A técnica funciona mediante a compra de ações de empresas sem valor através de um “testa-de-ferro”, que vende esses papéis em um mercado crescente a investidores reais. Mas essas ações, num futuro muito próximo, passam a não ter nenhum valor e os investidores perdem o dinheiro.

Não foram somente pequenos investidores que foram à bancarrota. O que se destaca é a ganância e a credulidade dos ricos, que foram seduzidos da mesma maneira por vendedores “jovens e estúpidos” que Belfort preferia contratar. Belfort foi (é) um comerciante brilhante e extravagante em estripulias fraudulentas, até que as drogas arruinaram seu bom juízo.

Belfort, mais uma vez, vendendo o elixir de sucesso após um breve período na prisão, confessou sentir vergonha de seu comportamento; mas eu suspeito que, no fundo, o seu desprezo por aqueles que ele enganou supera qualquer sentimento de remorso.

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Em recente livro, Capitalism in the Twenty-First Century (O capitalismo no Século XXI, numa tradução livre), o economista Thomas Piketty descreve Stratton Oakmont como um exemplo de “extremismo meritocrático” – o ponto culminante de uma transição de um século desde a antiga desigualdade, caracterizada pela riqueza herdada e o estilo de vida discreto, para a nova desigualdade, com seus bônus enormes e consumo iminente.

Belfort tem sido comparado a um perverso Robin Hood, que rouba dos ricos para dar a si mesmo e a seus amigos. Os ricos consistiam na sociedade protestante com fortunas herdadas, cujos membros perderam suas riquezas “confiscadas legitimamente” por oportunistas astutos – principalmente judeus -, amorais o suficiente para se apropriarem da riqueza para si mesmos.

A propósito, as especulações de Stratton Oakmont estavam longe de ser uma exceção. Como me disse um amigo – que foi regulador da SEC, a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos, por 20 anos – quando eu perguntei a ele qual era a extensão da fraude: “Em minha opinião, é generalizada”. O sistema simplesmente permite que seja muito fácil, e a natureza humana faz com que seja conivente praticá-lo em ambos os lados. “A ganância é a fonte de todos os golpes.”

O lobo de Wall Street foi um predador, mas também foram todos os bancos de investimento respeitáveis que realizaram operações de venda de curto prazo e os bancos de varejo que ofereceram hipotecas a mutuários insolventes, mesmo porque essas hipotecas seriam então reembaladas e vendidas como títulos de valores de qualidade duvidosa de investimento. Todos eles eram lobos em pele de cordeiro.

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Um sistema bancário decente tem duas funções: cuidar do dinheiro dos depositantes e reunir poupadores e investidores em negócios mutuamente rentáveis. As economias são depositadas em bancos, pois eles são vistos como meios confiáveis e onde o dinheiro não deveria ser roubado.

Os tratos que os bancos organizam entre devedores e credores são o sangue vital das economias modernas – e um trabalho muito arriscado para o qual banqueiros precisam ser bem recompensados. Mas, o dinheiro que os banqueiros ganham acima do custo de suas compensações pela prestação de um serviço essencial representa o que Adair Turner, ex-chefe da agência reguladora do Reino Unido, chama de “perda social”, ou o que costumava ser descrito como “usura”.

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Não é o tamanho do sistema financeiro que deveria nos alarmar, mas sua concentração e conectividade. No Reino Unido, uma parte cada vez maior tem-se concentrado em um dos cinco maiores bancos. A teoria econômica tradicional nos diz que os lucros excessivos são o resultado direto da concentração da propriedade.

A conectividade é o vínculo que existe entre os bancos. Esses links podem ser locais, como em Wall Street ou na cidade de Londres. Não obstante, esses vínculos tornaram-se globais com o desenvolvimento de produtos financeiros derivados, que deveriam aumentar a estabilidade do sistema bancário como um todo, ao expandir o risco. Em vez disso, eles aumentaram a fragilidade do sistema correlacionando risco ao longo de um espaço muito maior.

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Segundo um artigo publicado por Andrew Haldane, do Bank of England, e o ecólogo Robert May, da Universidade Oxford, na Inglaterra, os derivados podem ser semelhantes a um vírus e ter efeito em cascata por todo o sistema. Os operadores e engenheiros financeiros compartilharam as mesmas suposições sobre os riscos envolvidos. Quando essas suposições se mostraram falsas, todo o sistema financeiro ficou exposto à infecção.

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A concentração e a conectividade se reforçam mutuamente. Dois terços do crescimento recente dos balanços financeiros dos bancos do Reino Unido não são constituídos por ativos entre bancos e empresas, mas de dívidas internas entre bancos – um caso claro de dinheiro criando dinheiro.

Os reformadores do sistema bancário desejam limitar os bônus dos banqueiros, estabelecendo barreiras entre os vários departamentos bancários ou (mais radicalmente) limitando a proporção total dos ativos bancários executados por um único banco. Mas a solução duradoura é simplificar o sistema financeiro. Como Haldane e May colocaram: “A excessiva homogeneidade dentro de um sistema financeiro – em outras palavras, que todos os bancos façam o mesmo – pode minimizar o risco de cada banco em particular, mas vai maximizar a possibilidade de que todo o sistema entre em colapso.” Enquanto os bancos possam lucrar de suas transações financeiras, eles continuarão a expandir os instrumentos financeiros derivados em excesso, com relação a qualquer demanda legítima de operações de cobertura que necessitem realizar as entidades não bancárias, e, portanto, os bancos continuarão criando produtos redundantes, cuja única função é lucrar para seus inventores e vendedores.

Como restringir derivados é agora, de longe, o tópico mais importante na reforma do setor bancário, a busca por soluções deve ter em conta o fato de que a economia não é uma ciência natural. Como May aponta: “A probabilidade de que uma tempestade excepcional aconteça a cada cem anos não muda porque as pessoas pensem que a tempestade se tornou mais provável”.

Nos mercados financeiros, as probabilidades realmente variam de acordo com o que as pessoas pensam. Quanto menos tenham que pensar, melhor. Jordan Belfort tinha razão em um ponto: é preferível que aqueles que se envolvem em finanças não sejam muito inteligentes.

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Robert Skidelsky é membro da Câmara dos Lordes britânica e professor emérito de Economia Política na Universidade de Warwick

(Tradução: Roseli Honório)

© Project Syndicate, 2014

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