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É possível uma quebradeira em série no setor aéreo?

Em uma semana, a Avianca iniciou processo de falência e a Latam Brasil pediu recuperação judicial — o momento é grave para as aéreas

Por Diego Gimenes
Atualizado em 11 jul 2020, 10h12 - Publicado em 11 jul 2020, 09h00

No mês de abril, a demanda por voos domésticos caiu 93% enquanto o número de voos internacionais desabou 96%, de longe os mais desastrosos números da série histórica da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), iniciada em 2000. Os dados foram compilados pela Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear). Apesar dos indicativos apresentarem uma leve melhora nos meses de maio e junho, o setor aéreo vive uma crise mundial sem nenhum precedente e distante do seu final. As companhias aéreas já registraram déficits bilionários no primeiro trimestre mesmo com os dois primeiros meses do ano com demanda dentro da média e, agora, precisam solucionar uma equação extremamente complexa para evitar demissões em massa e manter minimamente suas rotas nacionais e internacionais para assim evitar um agravamento ainda maior de um cenário que já é devastador.

Se a fuga dos passageiros é um dos maiores problemas para a aviação brasileira, a alta volatilidade do dólar, que chegou a valer quase 6 reais em maio, compromete ainda mais a capacidade das companhias de se reorganizarem financeiramente, em vista que grande parte de seus custos é dolarizado. “O que vai determinar a velocidade da retomada da demanda no Brasil são duas coisas: a primeira é a capacidade com que Brasil e América Latina vão superar a crise e em segundo a capacidade de voltarmos a ser uma região segura para viagens, o que também significa um enfrentamento adequado à pandemia. Embora ainda seja cedo, com alguma margem de segurança já estamos prevendo demanda em torno de 60% do normal no início de 2021, mas não estamos indo muito à frente porque algumas variáveis importantes estão sendo definidas, como o câmbio, que representa 50% dos nossos preços, não e possível dizer qual será o movimento do dólar e isso é decisivo de como a aviação vai se apresentar nos próximos meses”, projetou Eduardo Sanovicz, presidente da Abear.

Sem uma previsibilidade sobre o comportamento do dólar nos próximos meses, outra questão que aflige os executivos é o valor das passagens aéreas. Com uma demanda muito abaixo do normal, o que se espera em contrapartida são preços mais competitivos para atrair os passageiros. No primeiro trimestre, o valor médio das tarifas domésticas caiu apenas 4,5% em comparação com o mesmo período de 2019, valores que ainda não refletem a disparada do dólar no país e tampouco os efeitos causados pelo distanciamento social nas aeronaves e pelas medidas de higiene, como a instalação de filtros de ar, que renovam quase 100% das partículas presentes nos aviões a cada 3 minutos. “Na construção da tarifa há pelo menos três fatores que sempre foram e continuarão sendo os fundamentais, que é a demanda de clientes, a taxa de câmbio e o preço do querosene, que também é dolarizado. Os novos processos de higienização trazem impactos que possuem peso muito menor do que os anteriormente mencionados. Com o nível de volatilidade dos indicadores citados acima, não há como fazer qualquer tipo de projeção neste momento, inclusive sobre qual seria a configuração da tarifa nos próximos meses”, afirma a Gol, procurada por VEJA.

Cabe destacar a aprovação da MP 925 pela Câmara dos Deputados na noite da última quarta-feira, 8, que dentre outros aspectos garantiu o saque do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) pelos aeronautas e aeroviários até o limite do saldo existente na conta vinculada, de 6 parcelas de 3.135 reais no caso de suspensão total do salário e de 1.045 reais no caso de redução do salário. Essa era uma das reivindicações da classe e, além disso, vale ressaltar a capacidade das empresas e dos tripulantes de chegarem, em sua maioria, a um consenso sobre redução de salários e jornadas. Até o momento, não houve demissões em nenhuma das três grandes companhias aéreas que operam no Brasil. “A decisão da Câmara atende a categoria e vai compensar parcialmente as reduções salariais que já tivemos. Com Gol e Azul temos acordos semelhantes até dezembro de 2022, com redução de remuneração fixa na ordem de 30% e redução da variável também, mas com a contrapartida da manutenção dos empregos, que é o aspecto mais importante quando falamos de uma crise global. Conseguimos a estabilidade de mais de 10 mil funcionários”, destaca Ondino Dutra, presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas. “Com a Latam, porém, nós chegamos a um impasse, porque além de uma redução temporária muito agressiva, a empresa pretende fazer lá na frente uma redução permanente de jornada e sem garantia de emprego, podendo demitir o equivalente a 2.700 tripulantes. A categoria entende ser injustificável uma redução permanente e sem garantia de emprego, isso é ilegal e não se justifica. Mesmo que lá em 2022 a crise ainda seja forte, nada impediria que o acordo fosse renovado, se preciso. Como não houve nenhum tipo de avanço com a Latam, a questão agora foi para o Tribunal Superior do Trabalho (TST)“, finaliza.

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Os balanços do primeiro trimestre de 2020 já mostram o impacto inicial da grave crise nas grandes companhias, em vista que todas, sem exceção, tiveram prejuízos bilionários. A Gol registrou perdas de 2,2 bilhões de reais, a Azul apresentou um rombo nas contas de 6,1 bilhões e a Latam divulgou um número ainda mais impressionante: 11,5 bilhões na cotação da época, isso apenas no primeiro trimestre, mesmo com um período pré-pandemia em que os meses de janeiro e fevereiro o Brasil ainda não havia sofrido os efeitos do coronavírus. As companhias não comentam as projeções para o segundo trimestre, este sim que amargou todas as sequelas possíveis de uma economia fragilizada pela covid-19. Com esse cenário, um pacote de ajuda se torna ainda mais imprescindível para reparar minimamente o caixa das empresas. Em maio, Gustavo Montezano, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), anunciou que as aéreas tinham aderido a um pacote de ajuda de 6 bilhões de reais, divididos igualmente entre as três maiores companhias do país em uma parceria com bancos privados. Esse instrumento deveria gerar um fôlego até pelo menos o primeiro trimestre de 2021, mas passados dois meses, não houve nenhum anúncio pelas partes confirmando a movimentação. Tanto os bancos quanto as companhias negam um acordo e afirmam ainda estarem negociando individualmente o pacote que aliviaria a pressão sobre as contas das empresas. Enquanto isso, as aéreas se viram como podem. Em maio, a Qatar Aiways e as Famílias Cueto e Amaro comprometeram quase 5 bilhões de reais em financiamento para a Latam sob os mecanismos DIP (Debtor in Possession, sigla em inglês). Na última quinta-feira, 9, a Latam Brasil entrou no processo de recuperação judicial do grupo nos EUA e também anunciou um novo financiamento de quase 7 bilhões com o fundo Oaktree Capital Management. A Azul vendeu no último dia 3 a sua participação indireta de 6% na portuguesa TAP para o governo local por 65 milhões de reais e, além disso, eliminou o direito de conversão dos bônus seniores detidos pela Azul no montante que corresponde a 540 milhões e com vencimento em 2026. A Gol, por sua vez, vendeu na última segunda-feira, 6, o equivalente a 1,2 bilhão em passagens aéreas antecipadas para a Smiles.

A consultoria Bain & Company elaborou um estudo em que traça possíveis saídas para uma recuperação financeira mais forte do setor aéreo brasileiro. Dentre as alternativas, o estudo trabalha com a possibilidade de manter as três grandes empresas independentes mas com um amplo acordo, mais robusto em relação ao que está vigente, de compartilhamento de voos entre Azul e Latam. Outra saída seria uma fusão definitiva entre Azul e Latam, que é considerado o melhor cenário, a situação ideal, mas os próprios especialistas reconhecem a complexidade de se concretizar uma movimentação desse tipo. Outra alternativa é a cessão das atividades de uma das três grandes companhias, cenário este considerado o menos provável no momento. “Antes de qualquer possibilidade de fusão ou codeshare maiores, para as empresas alcançarem uma retomada segura e consciente é preciso preservar o caixa, aumentar a resiliência e gastar o menos possível. Além disso, negociar com os credores e reestruturar as obrigações. A Latam, por exemplo, abriu um processo de recuperação judicial nesse sentido”, afirma André Castellini, sócio da consultoria responsável pelo estudo. “Quando há um excesso de oferta, a fusão é um maneira de reduzir seus custos, isso seria uma forma de ter uma oferta mais alinhada com demanda, mas sabemos é complexo, tem suas desvantagens, é bastante complicado. O que pode acontecer e é plausível também seria uma extensão do codeshare atual, com mais rotas e até mesmo um compartilhamento entre as três companhias. A internacionalização seria uma alternativa se essas empresas também não tivessem problemas de caixa. A dificuldade das brasileiras é a mesma das demais, das americanas, a própria Qatar que tem participação na Latam está com dificuldades. Muito difícil encontrar alguma companhia que não esteja poupando caixa”, finaliza.

VEJA procurou as três companhias para entender o impacto real na malha aérea do país e entender as projeções de retomada. A Gol afirmou que “reduziu a oferta de cerca de 800 voos por dia para apenas 50 em abril (que atendia apenas as capitais do país), em maio foram 70 e em junho cerca de 100 voos”. Em julho, a Gol estima que deve chegar a algo próximo de 250 voos, contando inclusive com a volta de importantes rotas regionais e a intenção é em setembro retomar alguns dos destinos internacionais. A Latam diz que “entre abril e maio a companhia operou apenas com 5% da sua capacidade pré-pandemia, em junho com 9% desta capacidade e em julho esse volume chegará a 18%”. A Azul, por sua vez, acredita que a retomada será “gradual, mês a mês, até talvez chegar a uma malha aérea completa provavelmente em dezembro ou no início de 2021”. Em abril, a empresa serviu apenas 70 voos diários e em junho a oferta chegou a cerca de 180 voos ao dia. A expectativa é de crescimento dessa oferta e recuperação da conectividade doméstica de acordo com a resposta da demanda pelo transporte aéreo.

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O famigerado “novo normal” da sociedade preocupa os executivos do setor, em vista que a adoção de práticas como reuniões corporativas remotas podem permanecer após a pandemia e enfraquecer o setor no futuro, mas segundo as empresas, ainda existe espaço para crescimento. “Temos visto que a demanda corporativa está voltando mais devagar. Muitas empresas continuam paradas ou trabalhando em esquema de home office. Prevemos sim uma queda na demanda por voos corporativos, mas o Brasil antes mesmo da pandemia já tinha muito potencial de demanda. O brasileiro viaja muito pouco e são dezenas de milhares que precisam ser incentivados a utilizar o transporte aéreo. Por mais que haja uma redução nesse segmento, nosso país tem a capacidade de recuperar o fluxo de viagens em outras frentes”, disse a Azul. Deve-se, no futuro, considerar os perfis de clientes que ainda viajarão. Os consumidores mais viáveis serão aqueles que foram empregados ou mantiveram-se empregados durante a crise. Isso pode ditar quais rotas precisam ser planejadas e previstas. “As empresas devem questionar: quais rotas terão demanda e ainda serão viáveis? Não se pode assumir que rotas lucrativas anteriormente permanecerão lucrativas, especialmente se dependerem do volume de viajantes a negócios. Poucos poderiam ter antecipado o impacto que a covid-19 teria no setor, mas acabou servindo como um forte lembrete de que a prontidão para crises deve ser incorporada em todas as partes do setor, com planos claros e capazes de se reduzirem, se necessário”, pontua Valdir Augusto Assunção, sócio da PwC Brasil. “Companhias aéreas, fornecedores, fabricantes e arrendadores também devem trabalhar de forma mais colaborativa, para garantir que haja flexibilidade para ampliar frotas prontas para o serviço, quando necessário.”

 Voar é um anseio que nos remete aos tempos pré-históricos. Um desejo que está na alma do ser humano desde quando o homem passou a observar o voo dos pássaros e de outros animais voadores. Foram inúmeras as tentativas mal sucedidas de voo até o ano de 1906, quando ocorreu a histórica decolagem do 14-bis, idealizado pelo brasileiro Santos Dumont. “Não se espante com a altura do voo. Quanto mais alto, mais longe do perigo. Quanto mais você se eleva, mais tempo há de reconhecer uma pane. É quando se está próximo do solo que se deve desconfiar”. É difícil, apesar da situação periclitante da Latam e o pedido de falência da Avianca imaginar uma quebradeira em série na aviação. A retomada das viagens, o apoio do governo que não poderá alijar o país dos serviços de transporte aéreo, e o gosto intrínseco do ser humano por voar. Se estivesse vivo em 2020, Santos Dumont diria que as aeronaves estão muito próximas do solo, mas com potencial de subir novamente. 

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