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Por que o trabalhador urbano tem de se aposentar antes do rural? Por que o servidor público tem de se aposentar antes, muito antes, da empregada doméstica?

Por Pedro Fernando Nery *
Atualizado em 4 jun 2024, 16h07 - Publicado em 25 jan 2019, 07h00

Repetidamente dizemos que a Previdência brasileira destoa da do resto do mundo, em suas regras e seus gastos. Mas poucos observam que o Brasil é tão desigual que nele existem diversas “previdências”. Elas atendem, com critérios diferentes, grupos distintos da população. Uma visão para a reforma da Previdência pode ser simplesmente usar normas que já temos: elas são aplicadas aos mais pobres, e chegou a hora de adotá-las para os mais ricos.

Por que o trabalhador urbano tem de se aposentar antes do trabalhador rural? A idade mínima dos rurais é de 60 para homens e 55 para mulheres. Já a aposentadoria por tempo de contribuição nem sequer tem idade mínima, e a média se dá aos 55 para homens e 52 para mulheres. A advogada precisa mesmo aposentar-se antes do pescador? A criação de uma idade mínima para esse tipo de aposentadoria não deveria ser tão polêmica. Afinal, ela nada mais é que um seguro contra a velhice: não é um seguro contra o tempo de contribuição em excesso. A ausência desse critério beneficia os mais ricos, enquanto os mais pobres se valem de benefícios com idade mínima para se aposentar.

Nesse modelo, estamos ao lado de países do Oriente Médio e do norte da África: são poucas as nações em que a aposentadoria não possui mínimo de idade. Já que fomos a Israel para a cooperação contra a seca, no quesito “Previdência” poderíamos trocar informações com Irã, Iraque e Síria. O próprio Brasil tinha idade mínima de 55 anos até pouco antes do regime militar, quando vivíamos menos. Valeu mesmo, Jango! E por que o servidor público tem de se aposentar antes, muito antes, da empregada doméstica? Servidores já possuem regra de idade, mas, na média, ainda se aposentam antes de 55 (mulher) e 60 (homem). Enquanto isso, os mais pobres entre os pobres aposentam-se aos 65 (mulher ou homem). Refiro-me aqui ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Lei Orgânica de Assistência Social (Loas). Ex-trabalhadores com menos de quinze anos de contribuição aposentam-se por esse benefício. Na maioria mulheres, afetadas pelo desemprego e pela informalidade. Essa instabilidade contrasta com a estabilidade do servidor público, mas é este que conta com a previdência privilegiada. Alguns diriam que o BPC não deveria entrar na conversa, por ser formalmente assistencial. Mas o aporte do Tesouro a esse programa é menor que o déficit da previdência dos servidores. O déficit per capita do funcionalismo é superior a 4 000 reais por mês; o do BPC é de um salário mínimo. Qual é mesmo assistencial?

Até na aposentadoria por idade urbana, para quem teve entre quinze e trinta anos de contribuição, existe idade mínima: 60 para as mulheres e 65 para os homens. Já metade dos militares se aposenta antes dos 50. As “características especiais” desses profissionais não são tão penosas quanto as do catador, do pedreiro. O pessoal que se aposenta aos 65 não fez ministros para defender suas “peculiaridades”. Por causa dessas distorções, que levam os mais ricos a se aposentar antes, a idade média de aposentadoria é de 57 anos em Santa Catarina mas de 64 anos em Roraima.

Ainda, por que o Bolsa Família é proporcional ao número de filhos, mas a pensão por morte não? Ambos foram pensados para suprir necessidades de famílias sem renda. Ao contrário do que se verifica no resto do mundo, o Brasil paga hoje pensões de 100%, independentemente da situação da família. No Bolsa Família, o valor é de 30% do máximo se não há crianças ou adolescentes na casa. A presença de um jovem eleva o benefício em 15%. Reduzir a reposição de novas pensões a 70% ou 60% quando há só um dependente parece ser um ajuste razoável. Em que pese o drama associado a esse benefício, seu gasto já é maior que todo o orçamento da Saúde ou da Educação.

Muitos países também restringem o seu pagamento quando a família tem outras rendas, como aposentadorias ou salários. Esse tipo de restrição existe em diversos benefícios da Seguridade: o Bolsa, o BPC, o abono salarial, e também em benefícios previdenciários (salário-família, auxílio-reclusão). Limitar o acesso à pensão de acordo com a renda familiar não afetaria as famílias mais pobres e ajudaria muito o sistema a manter-se de pé.

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Enquanto você lia este texto, a Previdência gastou 7 milhões de reais. Nosso sistema previdenciário custa 30 000 reais por segundo. Neste ano, já despendemos com a Previdência todo o orçamento da Ciência e Tecnologia, o investimento previsto para o saneamento básico ou as despesas com o ensino profissional. Eis a grandeza do desafio.

A qualidade de vida no país melhorou e vivemos mais: a expectativa de vida para quem já chegou aos 65 é de 83 anos em todos os estados (não a confunda com a expectativa de vida ao nascer, derrubada em regiões pobres pela desgraça da mortalidade infantil e pela tragédia do assassinato de jovens). Enquanto isso, as famílias brasileiras decidiram ter menos filhos. São menos pessoas para financiar os benefícios dos brasileiros que vivem mais.

O crescimento do déficit previdenciário devora as outras áreas do Orçamento. Alguns defendem a tese de que a saúde e a assistência social devem ser sacrificadas: elas dividem com o déficit da Pre­vidência as contribuições sociais (CSLL, Cofins). Essa despesa frenética também pode ser absorvida por mais impostos ou mais dívida. O sucesso dos governos eleitos em outubro — o do presidente e o dos governadores — depende de uma ampla reforma.

O governo sinalizou que pode não refinanciar devedores e que haverá convergência tributária entre pessoa física e pessoa jurídica. Seria bem-vinda também alguma ousadia em relação às renúncias: empresas que, por lei, não contribuem. A maioria delas tem retorno social questionável, e isso inclui o Simples Nacional. Apesar dos gritos de “inconstitucional”, a reforma vai justamente defender a Constituição: não há dinheiro para o cumprimento de seus direitos sem reforma. A Previdência equivale a 60% do gasto primário federal, e lança-se a 80% nos próximos dez anos. A reforma prestigia a própria democracia, ao proteger um dos seus principais instrumentos, que é o Orçamento.

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Os representantes eleitos não têm escolhas para deliberar quando o Estado é só uma folha de pagamento. A discussão é complexa, mas também simples. Não é preciso ir muito longe: basta aplicar a regra do pedreiro e da empregada à aposentadoria do patrão.

* Pedro Fernando Nery é economista e coautor de Reforma da Previdência — Por que o Brasil Não Pode Esperar

Publicado em VEJA de 30 de janeiro de 2019, edição nº 2619

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