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O orçamento nunca foi “autorizativo”

Torná-lo impositivo é uma exigência civilizatória

Por Maílson da Nóbrega Atualizado em 4 jun 2024, 14h25 - Publicado em 20 mar 2020, 06h00

Uma lenda virou verdade: “O Orçamento é autorizativo”. A lei orçamentária “autoriza” gastos, mas o governo cumpre o que quiser. Isso é repetido por servidores da área econômica, jornalistas, economistas e até, pasmem, por parlamentares. O Orçamento é e sempre foi “impositivo”.

Pela Constituição, artigo 165, parágrafo 8º, “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa”. São dois vocábulos distintos. O primeiro se refere à estimativa da receita, pois não há como ser preciso nesse campo. O segundo traduz uma determinação, isto é, uma imposição.

Questões orçamentárias estão na origem da democracia. Seu primeiro marco é a Carta Magna inglesa (1215). A elevação de impostos passou a depender da prévia autorização de barões e bispos reunidos em um Parlamento.

A Revolução Gloriosa inglesa (1688) transferiu a supremacia do poder do rei para o Parlamento. O monarca perdeu poderes absolutos, enquanto os legisladores ganharam a prerrogativa de aprovar também a despesa pública. O Orçamento tornou-se uma lei, que como tal deve ser cumprida. É o que também decorre das constituições nascidas da Revolução Americana (1775-1783) e da Revolução Francesa (1789). Nelas, o Orçamento é impositivo.

“Esta é a hora de livrar o país dos custos das aberrações que rondam o Orçamento”

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No Brasil, ao contrário, o assunto nunca foi levado a sério. Antes, os parlamentares aproveitavam a discussão do Orçamento para nomear protegidos e dar nome a ruas. Por isso a Constituição de 1937 incluiu um dispositivo acaciano, ainda presente no mesmo artigo 8º da Constituição: a lei orçamentária não conterá dispositivo estranho à receita e à despesa. Qual seria outro?

Aqui, o presidente da República emite um “decreto de programação”, estabelecendo o que vai cumprir da lei orçamentária. E todo mundo aceita como parte das tradições e dos costumes. Funcionários do Tesouro exercem o poder de “gerenciar” o Orçamento, controlando gastos na “boca do caixa”. A prática explica obras paradas que não recebem os recursos inscritos no Orçamento.

Esse “contingenciamento” não existe em democracias sérias. Nelas, quando é necessário efetuar cortes orçamentários, cabe ao Parlamento autorizá-los. É mais demorado, todavia permite a discussão pública sobre as mudanças.

Recentemente, o Congresso decidiu que o relator do Orçamento pode designar as áreas em que aplicar 30 bilhões de reais no exercício de 2020. É uma inovação inacreditável: um parlamentar exerceria funções típicas do Poder Executivo. Haja criatividade!

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Existem muitas outras esquisitices, que o espaço não permite analisar. Caso, por exemplo, da interpretação marota dos relatores do Orçamento, pela qual “reestimam” as receitas. Driblam a norma segundo a qual emendas parlamentares dependem do cancelamento de outras dotações.

Em um momento de crise econômica, provocada pelo avanço do coronavírus, que demanda uma resposta efetiva do governo, esta é a hora de discutir seriamente a matéria, de forma a livrar o país dos custos das aberrações institucionais que rondam o Orçamento.

Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679

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