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Por Paulo Furquim de Azevedo
Análises com o rigor e o método acadêmicos, mas com uma linguagem acessível para todos, sem os jargões e as firulas do texto acadêmico. Com a co-autoria de Luciana Yeung
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Uma lei para a “uberização”: muito barulho por pouco

Projeto deve agradar alguns motoristas, aqueles que não contam com alternativas de previdência, e desagradar outros, que buscam flexibilidade na plataforma

Por Paulo Furquim de Azevedo
Atualizado em 12 abr 2024, 11h47 - Publicado em 10 abr 2024, 18h18

Andando pelas ruas de São Paulo, notei um adesivo inusitado no automóvel que trafegava à minha frente: “Vote contra o PLP 12/2024”. Inusitado porque o referido projeto de lei tem como motivação a proteção dos trabalhadores de aplicativos de transporte individual de passageiros (ou seja, Uber, 99 e outros) e quem ostentava o adesivo em seu automóvel era um motorista da Uber. Por que aquele que seria protegido pela nova lei seria tão vocal contra ela? Mas qual é mesmo o problema da “uberização” que o projeto pretende resolver?

O assunto é mais complicado do que parece e inspira opiniões tão divergentes que é prudente abordá-lo por partes, em mais de um artigo. Neste, vou tratar da motivação do projeto de lei, deixando para depois uma avaliação mais geral de seus efeitos esperados. Já antecipo que não se trata de um desastre, como dizem uns, e nem de uma panaceia, como dizem outros. O projeto deve agradar alguns motoristas, aqueles que não contam com alternativas de previdência, e desagradar outros, que buscam a flexibilidade da plataforma e preferem continuar na informalidade. Deve também dar alguma segurança jurídica às plataformas digitais, hoje às voltas com inúmeros processos judiciais sobre a existência ou não de vínculo trabalhista entre elas e motoristas; mas deixa de lado muitos trabalhadores que estão vinculados a plataformas digitais de outra natureza, como iFood ou apps para contratação de serviços de beleza ou cuidadores de idosos. Mas voltemos à motivação para o novo projeto de lei, a chamada “uberização” do trabalho. Faço questão de escrever esse neologismo entre aspas para não restar dúvidas de que não fui eu quem o cunhou. 

O termo não é bom. Mais confunde do que esclarece. Mas viralizou, o que está longe de ser um bom sintoma, como é evidente no caso dos vírus que deram nome à expressão tão em voga em tempos de redes sociais. Para além de se referir à prestação de serviços por meio de uma plataforma digital, a “uberização” está muitas vezes associada à precarização do trabalho, jornadas de trabalho mais longas, instabilidade de renda e ausência de direitos previdenciários e trabalhistas. Este é o problema que inspirou o PLP 12/2024 e várias outras iniciativas legislativas em municípios pelo Brasil. 

É inegável que esse problema existe e que essa é a realidade de parte dos motoristas da Uber e de entregadores do iFood. Não se trata, contudo, de problema novo. Trabalho com renda instável, sem direito a férias, FGTS, 13º, seguro-desemprego e aposentadoria não é algo próprio de uma plataforma digital, mas do trabalho informal (ou “sem carteira”), que já existia e era maior antes do lançamento do iPhone. Em 2002, 43,6% dos brasileiros que trabalhavam estavam na informalidade; número que caiu para 32,5% em 2012, como mostra artigo de Barbosa Filho e Moura (2015). Em 2022, segundo dados da Pesquisa por Amostra de Domicílios, do IBGE, a proporção de trabalhadores informais tinha crescido para 39,6%. Alguém poderia pensar: “a informalidade estava caindo, mas quando a Uber entrou no mercado brasileiro, em 2014, ela voltou a subir”. É verdade, mas não dá para dizer que ela aumentou por causa da Uber. Muita coisa aconteceu nesse mesmo período, sendo o desemprego e a pandemia os mais salientes, ambos causas do aumento da participação do trabalho informal. Além disso, houve aumento da participação na economia do setor de serviços, mais propenso à informalidade, e redução da participação do emprego industrial. 

Aliás, é interessante notar que a Uber, quando iniciou as suas atividades, intermediava passageiros e empresas formais de transporte executivo, que tinham muita ociosidade no uso de seus veículos e viam na plataforma uma oportunidade para colocá-los em uso. Seus motoristas, naquela época, eram contratados formalmente, não pela Uber, mas pelas empresas de transporte. Embora a situação hoje em dia seja muito diferente, o caso mostra que a informalidade não é uma fatalidade das plataformas digitais, mas uma realidade do mercado de trabalho desde que o mundo é mundo. 

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O caso do iFood também ilustra a impropriedade de atribuir a precarização do trabalho às plataformas digitais. Diferentemente da Uber, o modelo de negócio primário do iFood e do Rappi é conectar consumidores a restaurantes. Quando entramos na plataforma, não procuramos um motorista, mas uma refeição. É claro que essa refeição tem de ser entregue ao consumidor, e aqui entram os entregadores, mas nem sempre este serviço é prestado via iFood. Em um a cada dois pedidos, o restaurante opta por realizar a entrega ele mesmo, por meio dos seus próprios entregadores, na maioria das vezes também contratados informalmente. Quando se fala em “uberização”, está se incluindo ou não o trabalho dos entregadores não vinculados à plataforma? 

Esses dois casos sugerem que o trabalho precário não é causado pelas plataformas digitais, mas pelas características do próprio mercado de trabalho, pelas oportunidades de emprego para diferentes níveis de qualificação e pelos custos da formalização de empresas e de seus contratos de trabalho. É uma relação intrincada, muito bem traduzida em artigo de Gabriel Ulyssea. É interessante notar que as plataformas digitais, pela sua flexibilidade e baixo custo de ingresso, servem, muitas vezes, como alternativa àqueles que têm emprego formal em meio período ou que estão transitoriamente desempregados. São pessoas que entram e saem da plataforma, a usam mais ou menos intensamente, conforme as oportunidades mais interessantes aparecem. Psicólogos, músicos, contadores, técnicos em diversas áreas. Tem de tudo. Para esse público, a plataforma é complementar ao mercado formal de trabalho e não um estado permanente de trabalho precário.

Em síntese, não dá para imputar às plataformas digitais o crescimento da informalidade no Brasil. Por isso, “uberização” não é um bom termo para se referir à precarização do trabalho, algo que era mais comum há 20 anos do que é hoje, mas que ficava embaixo do tapete da opinião pública. O que as plataformas digitais fizeram foi dar maior visibilidade ao problema, bem como criaram uma oportunidade para mitigar as suas consequências. O PLP 12/2024 se aproveita da estrutura centralizada das plataformas de transporte individual de passageiros para propor uma série de medidas restritas a esse grupo, cuja avaliação fica para um próximo artigo. Por ora, basta reconhecer que nem todos os motoristas da Uber, 99 e outras querem ser formalizados como motoristas. Talvez isso explique por que alguns deles sejam contrários ao projeto.

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