Como a decisão do BC de cortar juros prepara terreno para o crescimento
O início do processo de queda da Selic era urgente para estimular o consumo das famílias e aquecer o mercado de crédito, que também engatara a marcha a ré
Um clássico do cinema dos Estados Unidos, 12 Homens e uma Sentença mostra a difícil tarefa de um corpo de jurados em deliberar sobre um suspeito de crime. Enquanto a maioria acredita que o acusado é culpado, apenas um deles insiste que haja uma investigação mais apurada para dar o seu parecer. O filme de 1957 é um convite para que o espectador reflita sobre a responsabilidade de decisões colegiadas, que podem gerar consequências desastrosas. De forma parecida, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central se reuniu, na quarta-feira 2, com uma importante decisão a tomar: reduzir a Selic, a taxa básica de juros que dita a cadência da economia real, em 0,25 ou 0,50 ponto percentual.
Felizmente, decidiu-se pela segunda opção, e a Selic agora está em 13,25% ao ano, mas não significa que a escolha tenha sido fácil. O placar foi apertado: cinco diretores votaram pelo corte de 0,50 e quatro queriam 0,25 ponto percentual. O presidente do BC, Roberto Campos Neto, como de praxe, foi o último a votar e pendeu para o corte mais fundo. O que o mercado não esperava era a sinalização, em comunicado, de que os cortes poderão continuar nesse ritmo nas próximas reuniões. “Segue ainda mais relevante o trabalho do Copom de acompanhar de perto a dinâmica da atividade e da inflação”, afirma o economista Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo.
Para além do economês, a verdade é que o BC enxergou que era preciso reduzir a dose do remédio amargo que há três anos vem ministrando para domar a escalada inflacionária. Nas últimas 24 reuniões do Copom, a Selic manteve-se inalterada ou subiu. Agora, enfim, a taxa caminha na direção oposta. Mas, além de deixar claro que vai fazer a descompressão com parcimônia, o comunicado sugere que a Selic seguirá por bom tempo em território contracionista. O mercado prevê que a taxa básica de juros atinja 9% ao ano, o que seria considerado o patamar ideal, sem gerar desequilíbrios na economia, apenas no fim de 2024.
De qualquer forma, o início do processo de queda da Selic era urgente para estimular o consumo das famílias, que mostrava sinais nítidos de desaceleração, e aquecer o mercado de crédito, que também engatara a marcha a ré. Um dos setores mais importantes da economia, a construção civil sofreu na era dos juros altos. No primeiro trimestre, os lançamentos imobiliários residenciais encolheram 44% em relação aos três meses anteriores, e a única saída para a retomada é baratear os financiamentos — e só se faz isso com Selic mais baixa.
A economia brasileira passou a colecionar nas últimas semanas uma série de notícias positivas que permitiram ao Banco Central iniciar o alívio do aperto monetário. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), um dos mais relevantes nesse contexto, identificou deflação de 0,07% em julho. Ao mesmo tempo, a nova regra fiscal e a reforma tributária, mudanças vitais para manter algum tipo de freio nas contas públicas e tirar o peso do Estado dos ombros de cidadãos e empresas, avançaram em Brasília. Tudo isso formou o cenário perfeito para o BC entrar em ação.
Com a curva de juros apontando para baixo, o mercado de ações deverá, enfim, ganhar novo ânimo após longa fase de baixa. Para ter ideia, no ano passado apenas uma empresa fez abertura de capital no Brasil, um tombo colossal diante das 46 realizadas em 2021. Por enquanto, 2023 permanece zerado em aberturas, embora alguns gestores já se movimentem — a expectativa é de que as empresas do setor de saneamento Iguá e Aegea puxem a fila entre o fim deste ano e o início de 2024. “A combinação de reformas aliada a uma redução de taxa de juros pode, de fato, impulsionar o mercado no segundo semestre”, afirma Alexandre Pierantoni, diretor de finanças corporativas da consultoria Kroll no Brasil. Há longo trajeto por percorrer. Pouco mais de 400 empresas estão listadas na B3, a bolsa de valores de São Paulo. Para efeito de comparação, as bolsas de Nova York e Nasdaq contabilizam, somadas, aproximadamente 6 000 companhias de quase todos os setores e tamanhos.
A providencial queda dos juros não é a única iniciativa com potencial para destravar o mercado de capitais. Recentemente, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou trinta propostas, chamadas por ele de “microrreformas”, que poderão trazer impactos positivos para o setor. Entre as novas ações estão a modernização de instrumentos de crédito, a criação de seguro-garantia em licitações e o cadastro de investidor estrangeiro em seguros e previdência. Outras duas são vistas como fundamentais pelos especialistas: facilitar o acesso de empresas ao mercado de dívidas e remover distorções tributárias que dificultam o trabalho de investidores institucionais, como grandes fundos ou bancos.
Não é a primeira vez que o Brasil adota uma agenda robusta de microrreformas. Embora pequenas, elas têm vocação para levar a grandes resultados. Na verdade, o presidente Lula tenta reeditar agora um movimento de seu primeiro mandato. Na ocasião, o projeto teve participação decisiva de Marcos Lisboa, então secretário de Política Econômica do governo. Lisboa ajudou a desenhar a Lei de Falências, que reduziu a insegurança jurídica e ajudou a trazer investimentos para o país. Ele também é um dos pais do programa de alienação fiduciária, que aumentou em 600% o acesso a crédito no Brasil. Desta vez, segundo Lisboa, um dos entraves para o mercado de capitais está diretamente ligado a questões jurídicas. “O Judiciário brasileiro é pouco cuidadoso em entender os problemas do mercado de crédito e capitais e com isso ajuda a destruir financiamentos de longo prazo das empresas”, diz o economista.
Ao lançar o pacote de microrreformas, o ministro Fernando Haddad comparou a iniciativa à preparação de um carro de Fórmula 1, em que é preciso acertar a mecânica para chegar à frente, “mais rápido que os outros”. O Brasil, disse ele, precisa acelerar fortemente para deixar o “Pibinho” para trás. Nesse sentido, a queda dos juros e as pequenas medidas de estímulo ao mercado de capitais representam a bandeirada inicial de uma corrida que promete ser longa, mas promissora para o país.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2023, edição nº 2853