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Decidindo quem vive no Haiti

Médico americano relata luta para salvar bebê prematuro no país atingido pelo terremoto

Por The New York Times*
2 out 2010, 14h42

Éramos 18 médicos, enfermeiras e outros profissionais de saúde do Hospital Infantil de Boston, numa missão de nove dias no Hospital Geral em Porto Príncipe, capital do Haiti, para trabalhar com uma equipe pediátrica local.

Era a primeira semana de maio, quase quatro meses após o terremoto, e a situação permanecia terrível. Havia destroços por toda parte, muitos prédios estavam inutilizáveis e todo o tratamento pediátrico estava sendo realizado em tendas. Os suprimentos eram esparsos e não-confiáveis.

Os obstetras do Hospital Geral estavam em greve, e mulheres em trabalho de parto eram encaminhadas a qualquer outro lugar. Mas havia se espalhado a notícia de que médicos americanos estavam no hospital, e muitos pacientes simplesmente se recusavam a ir embora.

E foi naquela chuvosa manhã de domingo que havia seis mulheres em trabalho de parto ativo no pronto-socorro. E logo uma delas, no final da adolescência, pariu um pequeno menino, de apenas um quilo. Um neonatologista de nossa equipe estimou que ele estivesse prematuro em dois meses. (A mãe afirmava nem mesmo saber que estava grávida.)

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Bebês prematuros podem passar por muitos problemas, e quanto menores eles são, maior o risco de complicações. Eles geralmente têm dificuldade em manter uma temperatura corporal normal, perdendo calor para o ambiente mais rápido do que conseguem gerá-lo. É por isso que eles são mantidos em incubadoras até que consigam se manter aquecidos por conta própria. Eles sofrem altos riscos de infecções, além de problemas com alimentação e respiração.

Estilo “MacGyver” – Assim que o bebê nasceu, nós o secamos e enfaixamos, e começamos a procurar por um lugar onde ele pudesse ser receber cuidados até estar estável o bastante para ir para casa. Não havia incubadoras funcionando no hospital, nem camas livres nas tendas pediátricas – e tampouco tivemos sorte em encontrar incubadoras nos outros hospitais.

Então um médico americano, trabalhando em outro acampamento, nos disse ter enfrentado uma situação similar alguns dias antes, e que havia construído sua própria incubadora – ao estilo “MacGyver”, como ele mesmo disse. Ele sugeriu que fizéssemos o mesmo.

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E foi isso que fizemos. Pegamos uma caixa de papelão da sala de suprimentos médicos, a acolchoamos com alguns panos médicos e um cobertor, e encontramos um abajur de mesa com uma lâmpada para servir como fonte de calor. Pronto, nosso paciente mais jovem agora tinha uma incubadora.

“Ele não vai sobreviver” – Na manhã seguinte, tentamos persuadir a pediatra haitiana em serviço a aceitar o bebê nas tendas pediátricas. “Não sejam ridículos”, zombou ela, pelo que me lembro. “Um bebê tão pequeno não vai sobreviver. Ele não tem chance de sobrevivência, e nós não temos camas livres para desperdiçar”.

Nenhum de nós se sentiu confortável para argumentar com ela. Mesmo assim, sabíamos que enviar o bebê à cidade de tendas de sua mãe enquanto ele estava tão vulnerável seria uma sentença de morte. Assim, decidimos manter ele e sua mãe no pronto-socorro até que um local adequado fosse encontrado – sabendo que precisávamos achar uma solução antes de retornar a Boston, já que a equipe que viria nos substituir não incluiria pediatras qualificados para tratar complicações de prematuridade.

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Encontramos uma mamadeira, além de algumas roupas e fraldas. As enfermeiras ensinaram a mãe como inserir leite na mamadeira e alimentá-lo. Nós o estávamos chamando de “bebê na caixa”; agora ele havia se tornado Jack, como “Jack in the Box”. Ele ficou bem, e sua mãe, após superar a surpresa do nascimento inesperado, se uniu a ele devotadamente.

Diariamente pressionávamos seu caso à equipe médica haitiana, e diariamente éramos recusados.

“Não há espaço para ele”, éramos informados, embora parecesse haver camas para outras crianças nas tendas pediátricas.

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Teimosia – Finalmente, na sexta-feira, encontramos uma incubadora para ele em outro hospital. Transferimoso o bebê e sua mãe para lá, satisfeitos por termos conseguido cuidar dele nos primeiros dias – mas totalmente cientes das probabilidades que ele enfrentaria adiante. No dia seguinte retornamos a Boston.

Seis semanas após nossa volta, numa reunião informal, o neonatologista disse ter ficado sabendo que Jack havia sido liberado com sua mãe com boa saúde, pesando 2,5 quilos.

Ficamos extasiados. Nossa teimosia tinha valido a pena.

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Mas nossa euforia foi abrandada por uma triste realidade. Analisando o cenário geral, tínhamos de reconhecer que os médicos haitianos provavelmente estavam certos.

Estávamos em Porto Príncipe, afinal, e não em Boston. Obviamente os haitianos, astutamente cientes do que podiam ou não podiam fazer com os recursos disponíveis, saberiam mais que um grupo de estrangeiros bem-intencionados acostumados aos melhores equipamentos que o dinheiro pode comprar. Não faria muito mais sentido investir tempo, esforços e os escassos recursos num bebê com maiores chances de sobreviver?

Mesmo assim, isso não era uma discussão abstrata sobre a alocação adequada de recursos médicos num país pobre, mas uma decisão sobre o destino de um bebê que estava vivo. Ele era nosso paciente, e estávamos determinados a lhe proporcionar o melhor atendimento possível.

Na visão do cenário menor, uma vida havia sido salva.

*Dennis Rosen é pneumologista pediátrico no Hospital Infantil de Boston e professor da Escola de Medicina de Harvard.

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