Na Costa do Marfim, a realidade é amarga até para os vencedores
Terminado o conflito, Ouattara enfrenta outra batalha: recuperar um país fragmentado pela violência e corrupção
“Os jogos de vinganças e disputas étnicas podem ficar muito complicados para o presidente”, avalia Karel Arnaut
Os grupos de direitos humanos que desembarcaram na Costa do Marfim nesta semana encontraram um cenário desolador. Os quatro meses de disputas pela Presidência marfinense deixaram um tapete de corpos em decomposição pela cidade de Abidjan, que os enviados da Organização das Nações Unidas (ONU) foram incapazes de contar a princípio. Bairros inteiros estavam sem água e eletricidade e sofriam com escassez de alimentos. Nas ruas, ainda se ouviam tiroteios esporádicos, mesmo depois do final oficial da guerra civil. Foi esse o país que Alassane Ouattara conquistou o direito de governar – primeiro nas urnas, em novembro de 2010, e agora na guerra, após depor militarmente o seu predecessor, Laurent Gbagbo, que se recusava a deixar o poder. Acabado o conflito, começa aquela que talvez seja a batalha mais dura de Ouattara: recuperar um país devastado pela violência e corrupção.
Agora, fala-se em 1.500 mortos e um milhão de desabrigados. As cenas que saíram da Costa do Marfim para as câmeras dos fotógrafos internacionais na última semana deixaram claro que houve uma onda de “acerto de contas” pós-guerra. Como já se viu em muitos outros países africanos, como Ruanda, os apoiadores de Ouattara – um grupo de etnias minoritárias e imigrantes marginalizado durante o regime de Gbagbo – estão se aproveitando da ocasião para se vingar. São soldados chicoteando opositores publicamente, humilhando outros grupos étnicos e até assassinando pessoas.
Desafios à vista – Os pedidos públicos do presidente para que se dê um fim à violência não foram suficientes. “Os grupos militares pró-Ouattara, que atuaram em Abidjan nos últimos dois meses – os chamados ‘comandos invisíveis’ -, são indisciplinados. Durante a guerra, a eles se juntaram ainda foragidos da cadeia”, explica o antropólogo belga Karel Arnaut, que há 19 anos se dedica ao estudo da política marfinense. “Com grupos assim envolvidos, os jogos de vinganças e disputas étnicas podem ficar muito complicados para Ouattara”. À selvageria se somam uma série de aliados de Gbagbo, que estão soltos e armados pelo país e podem dar novo impulso à criminalidade.
Há também os desafios clássicos de um país que amarga a posição 149 no ranking de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), no total de 159 países, onde o primeiro tem as melhores condições. Os diplomas marfinenses não valem nada e há uma enorme fuga de cérebros para o exterior. A infraestrutura das cidades e o sistema de saúde são precários e foram ainda mais destruídos pela guerra. A economia, contudo, é o menor dos problemas do novo presidente. Isso porque a Costa do Marfim é, potencialmente, um país muito rico. É o maior exportador de cacau do mundo e tem solo propício também para outras culturas, além ricas reservas de gás natural, petróleo e até algumas de diamantes e ouro. Mas saberá Ouattara usar essas riquezas para alcançar o desenvolvimento social que a Costa do Marfim nunca viu?
Assassinatos em massa – Acima de tudo, o presidente terá que enfrentar os fantasmas de seus próprios erros durante a guerra. Para começar, Ouattara precisará recuperar a confiança do povo marfinense, já que suas forças protagonizaram diversas carnificinas em seu nome. Em 29 de março, centenas de pessoas foram assassinadas em massa na cidade de Douékoué pelos aliados de Ouattara. Segundo um porta-voz da ONU, algumas delas chegaram a ser queimadas vivas. O inventário de vítimas oscilou entre 200 e 800, e não há, ainda, um número oficial. Depois de seu povo, Ouattara terá que dar explicações às cortes internacionais sobre o ocorrido. Ele mesmo declarou, dois dias após a prisão de seu oponente Gbagbo: “Ambos os lados devem enfrentar o Tribunal Criminal Internacional para responder pelos massacres”. Não deve haver exceções para o presidente.
E as chacinas de que se tem conhecimento até agora são apenas a superfície de um lamaçal profundo. “Conheço algumas pessoas que moram na Costa do Marfim e estão tão traumatizadas, foram tão agredidas que ainda não conseguem falar sobre o assunto. Agora, estamos no estágio de contar corpos. As histórias das crueldades cometidas virão depois, quando essas pessoas estiverem prontas para contá-las”, diz Arnaut. A realidade é bastante amarga – até mesmo para os vencedores.