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Dilma e o lobo: como a desconfiança envenena os negócios e destrói riqueza

Por fazer sistematicamente o contrário do que diz, Dilma Rousseff minou um ingrediente delicado, mas central para a prosperidade: confiança. Retomá-la é fundamental para recolocar o país na trilha do crescimento econômico duradouro. Nunca é fácil, como o pastor desacreditado da fábula de Esopo poderia atestar à petista. E é ainda mais desafiador para um país de baixo 'capital social', marcado por alta desconfiança e frágeis laços de cooperação

Por Daniel Jelin Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
2 set 2015, 07h49

A presidente Dilma Rousseff pode cortar dez, vinte ministérios. Pode reconhecer a gravidade da crise, ajoelhar no altar da responsabilidade fiscal e jurar compromisso com a meta de inflação. Pode e deve desarmar as bobajadas ‘desenvolvimentistas’ de seu primeiro mandato, e é bem possível que os indicadores de saúde financeira reajam à sensatez. É incerto, contudo, que consiga dissipar a espessa névoa de desconfiança que cobriu o ambiente econômico e político. Em primeiro lugar: por fazer sistematicamente o que contrário do que diz, a petista tornou-se ela própria uma fonte irradiadora de descrédito – até quando ensaia um mea-culpa, a presidente consegue soar oportunista e dissimulada, como ao dizer que errou por demorar a perceber a gravidade da crise. Em segundo lugar, quebras de confiança deixam marcas profundas e duradouras. ‘Leva-se vinte anos para construir uma reputação e cinco minutos para arruiná-la’, já disse o investidor Warren Buffett. Por mais doloroso que pareça, há boas razões para isso.

Confiança é um ingrediente delicado, mas decisivo e incontornável da prosperidade econômica. A literatura reconhece sua importância há séculos – nos escritos de Adam Smith e Alexis de Tocqueville, por exemplo -, mas foi só no final do século XX que a variável entrou de vez na equação do progresso, com a popularização do que se convencionou chamar de capital social. Para além da acumulação de bens (capital financeiro) e da formação profissional (capital humano), o capital social expressa a ‘riqueza’ das relações interpessoais de uma dada sociedade. Simplificadamente, onde há boa fé, onde é forte o sentimento de reciprocidade, onde as relações de confiança vão além do parentesco, tanto maior será o incentivo para as transações comerciais e a troca de conhecimento. Inversamente, o descrédito complica, encarece e acaba inibindo as negociações, exigindo das partes todo tipo de precaução.

Embora não tenha sido o primeiro a defini-lo, atribui-se ao americano Robert Putnam a difusão do conceito de capital social. Em estudo seminal de 1993, ele relacionou as diferenças entre as regiões mais e menos desenvolvidas da Itália – o Norte e o Sul, respectivamente – à variação da confiança, cooperação e sociabilidade espontânea. Dois anos depois, Francis Fukuyama buscou nestas ‘virtudes sociais’ a explicação para a pujança econômica de alguns países, em particular Estados Unidos, Alemanha e Japão. ‘Uma das lições mais importantes que se aprende com um exame da vida econômica é que o bem-estar de uma nação, bem como sua capacidade de competir, é condicionado a uma única e abrangente característica cultural: o nível de confiança inerente’, ensina Fukuyama, em Confiança (Rocco, 455 páginas), seu primeiro livro depois de O Fim da História e o Último Homem, que lhe granjeou fama mundial – e o ódio dedicado da esquerda.

Fukuyama defende que fortes laços de cooperação explicam a proliferação de entidades e associações eficientes, desde clubes esportivos e grêmios literários até as maiores corporações do mundo. Não é coincidência, diz, que as maiores marcas do mundo sejam predominantemente alemãs, americanas e japonesas, em proporção muito maior à de seu PIB. Já nos países em que as relações de confiança são limitadas aos laços de sangue, as empresas tendem a ser menores e familiares, e só a intervenção direta do estado pode forjar negócios de grande escala. É o caso marcante dos países latino-americanos, moldados por um Estado centralizador e autoritário que, na tentativa de mediar a associação entre seus cidadãos, acaba por esterilizá-la – basta ver como sindicatos, empresas, ONGs, agremiações estudantis, entidades religiosas, partidos e até ligas de futebol e escolas de samba são facilmente cooptados pela administração pública.

Seguindo a trilha aberta pelas ciências sociais, coube aos economistas Stephen Knack e Philip Keefer demonstrar empiricamente, para dezenas de países, a correlação entre níveis de confiança, produtividade e performance econômica. Christian Bjørnskov, também economista, testou então diversas hipóteses para tentar explicar como exatamente a confiança transmite incentivos econômicos e encontraram relações de causalidade entre boa fé, educação e governança. Bjørnskov, da Universidade de Aarhus, Dinamarca, exemplifica em entrevista ao site de VEJA: “Se os professores não são contratados e promovidos com base em seus méritos, mas em função de conexões pessoais e alinhamento política, cria-se um sistema de ensino de baixa qualidade, mesmo que se invista bastante dinheiro.”

O brasileiro cismado – Ainda não há consenso sobre a melhor maneira de medir ‘capital social’, mas é comum que se quantifique o nível da ‘confiança social’ de uma determinada população a partir de uma simples pergunta: você confia nas outras pessoas? Esse critério põe o brasileiro entre os povos mais cismados em todo mundo. Só 7,1% da população acha que dá para confiar na maioria das pessoas, segundo a última rodada da World Values Survey, atualizada em abril deste ano. De um universo de 60 países, da África subsaariana à Escandinávia, só quatro nações têm uma população tão cabreira: Gana, Colômbia, Filipinas e Trinidad e Tobago. Quase um em cada quatro brasileiros acredita que as outras pessoas querem tirar vantagem dele. Um em cada cinco brasileiros não tem a menor confiança no vizinho. “O Brasil é um triste exemplo do que pode dar errado com uma sociedade de baixa confiança. Elas são tipicamente caracterizadas por corrupção generalizada, em que o suborno se torna uma maneira de fazer negócios, um dado da vida política, algo que pode ser extremamente difícil de combater”, diz Bjørnskov. “E como as pessoas sabem disso, acabam ‘confiando’ que outras também vão recorrer ao suborno e ameaças para abrir caminho no serviço público.”

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Os países não estão condenados a ter o mesmo nível de confiança para sempre. “É tentador supor que, como conforme a renda cresça e a democracia finque raízes, aumente a confiança”, diz Knack, do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Econômico do Banco Mundial, em entrevista ao site de VEJA. Segundo ele, Índia, China e Indonésia estão fazendo algum progresso em convencer os cidadãos de que estão combatendo seriamente a corrupção e elevando a transparência. Mas ainda é cedo para dizer que tenham logrado elevar seu capital social. Há outros fatores na equação. “Desigualdade e violência minam a confiança, e baixa confiança, por sua vez, pode dificultar a implantação de políticas e instituições para reduzir a desigualdade e combater a violência”, exemplifica. “Temos que admitir: Sabemos mais sobre como destruir a confiança do que como construí-la”, diz Bjørnskov. “A reunificação da Alemanha já tem 25 anos, e a diferença entre os níveis de confiança na parte oriental e ocidental persiste (a confiança da antiga República Democrática Alemã, comunista, é menor). Da mesma forma, pode-se observar como grupos da sociedade americana reproduzem os níveis de confiança da terra natal de seus ancestrais, sejam descendentes de escandinavos em Minnesota e Dakota, sejam descendentes de italianos – em particular do Sul da Itália.”

Dá para acreditar? – As razões para a reserva que os brasileiros nutrem uns pelos outros são difíceis de sondar, mas pode-se afirmar com certa segurança que ela reflete a baixa credibilidade dos marcos e instituições que deveriam garantir a boa fé: governo, Justiça, polícia, Fisco, moeda, sistema financeiro, direito de propriedade etc. Seja como for, é um obstáculo adicional à retomada da confiança no ambiente de negócios, que voltou a bater recordes negativos. Em seu dirigismo teimoso, Dilma parece acreditar que, tal qual a taxa Selic, seja possível encomendar ao empresariado uma onda de otimismo e decretar uma injeção de boa vontade. Na semana passada, em jantar no Palácio da Alvorada, ela recebeu sete pesos-pesados do PIB nacional. Colheu as queixas do setor privado, admitiu ‘dificuldades reais’ e disse que todos têm de ajudar o país a superar a crise. Da parte dos principais executivos do Bradesco, CSN, Fiat, JBS, Dasa, Coteminas e Cosan, ‘ninguém manifestou falta de confiança’, segundo a hesitante dupla negação do ministro Armando Monteiro (Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior). Na manhã seguinte, pesquisa da FGV – não com 7 , mas com 1.132 empresas – mostrou o verdadeiro humor da indústria: a confiança do setor voltou a cair e atingiu o nível mais baixo em 20 anos de série histórica.

O indicador da confiança da indústria (ICI) apurado pela FGV, o primeiro do gênero na América Latina, tem contornos muito mais tangíveis que ‘confiança social’ – embora este dê fundamentos e limites àquele. É um dos melhores termômetros da atividade industrial. Ao contrário do PIB e outros indicadores de divulgação defasada, a confiança da indústria permite vislumbrar tendências futuras, em particular as inflexões da atividade econômica: de uma fase de aceleração à desaceleração e vice-versa, explica o economista Aloisio Campelo Jr., da FGV. O indicador capta dados objetivos da situação presente da empresa – o nível dos estoques e demanda, por exemplo – e sonda a disposição do empresariado para empregar e produzir nos meses seguintes. Que o ICI continue caindo – embora mais suavemente que no início do ano – é especialmente desalentador, porque corrobora previsões sombrias: a crise ainda está longe de passar.

Campelo explica que a curva da confiança empresarial inverteu-se em 2012, na ressaca do boom dos bens duráveis, e sua queda resistiu às chamadas medidas contracíclicas do primeiro mandato de Dilma, como as rodadas de redução do IPI e os cortes da taxa básica de juros. A confiança do consumidor, outro indicador medido pela FGV que também atingiu recorde negativo, resistiu um pouco mais, amparada na boa fase do mercado de trabalho, mas também virou e passou a cair. Na segunda metade do governo Dilma, o cenário de desaceleração econômica já estava traçado para além de qualquer dúvida razoável. No segundo trimestre de 2014, bem antes das eleições, o país entrou definitivamente em recessão, segundo os critérios do Comitê de Datação de Ciclos Econômicos, da FGV.

Embora a desconfiança seja recorde, este não é o primeiro tombo dos indicadores empresariais na história recente do país. Em 2008, a confiança também foi ao chão, na esteira da crise financeira mundial e consequente aperto no crédito. ‘Mas o Brasil vinha de uma fase boa, com inflação e contas públicas sob controle’, diz Campelo. ‘O governo lançou medidas de estímulo e houve um aspecto psicológico, bem transmitido à população, de que o país estava se saindo melhor do que outros países, o que era fato.’ O cenário de 2015 é mais sombrio, e por isso a recuperação será mais lenta. No campo econômico, Campelo destaca os impactos negativos do tarifaço na energia, o choque da inflação, a alta dos juros, a restrição de crédito e o nível elevado dos estoques. Agravado pela turbulência política, o clima de incerteza não permite que as empresas tracem cenários confiáveis para investir e contratar. ‘A insatisfação é muito grande com o momento atual, e as empresas não veem perspectivas lá na frente’, resume Campelo.

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Confiança e credulidade – A desconfiança é um estado de forte tendência inercial: tudo o mais constante, resistirá notavelmente à passagem do tempo. Como aprendeu o pastor mentiroso de Esopo, os aldeões não acreditarão tão cedo que, agora sim, ‘É o lobo!’. Dilma, que pareceu encenar uma versão às avessas da fábula – os aldeões é que alertam o pastor, que primeiro se recusa a enxergar o predador e depois atribui o sumiço das ovelhas a tucanos, chineses etc. -, terá que romper com a inércia de seus discursos fora de lugar. Os petistas se irritaram quando Fernando Henrique Cardoso sugeriu à presidente que tivesse a ‘grandeza’ de renunciar e talvez não tenham dado suficiente atenção à recomendação alternativa contida no final da declaração: ‘ou a voz franca de que errou’. A franqueza é de fato o fio com que se remenda a confiança perdida. Examinando os casos de grandes empresas atingidas por crises de confiança, como Toyoya, Mattel, Siemens e BBC, Graham Dietz e Nicole Gillespie propuseram uma estratégia em quatro fases para reparar os estragos: 1) resposta rápida, com reconhecimento público do incidente e de sua investigação; 2) diagnóstico acurado e transparente do caso; 3) reparações, pedidos de desculpas e implementação de reformas para sanar as falhas; 4) contínuo monitoramento dos desdobramentos do caso.

Para além de seus efeitos dramáticos, crises de confiança são também uma oportunidade para buscar ‘aplicações’ mais sólidas para o capital social. Nesse sentido, a desconfiança não é – apenas – a negação de confiança, mas também uma afirmação: o resgate de um ‘investimento’ mal feito. É necessário que seja assim, ou confiança acabará se confundindo com credulidade. Em O Gene Egoísta, célebre livro do biólogo Richard Dawkins, há uma passagem ilustrativa sobre a seleção de traços comportamentais que a tese da programação egoísta, a princípio, não parece capaz de explicar, como os laços de reciprocidade e altruísmo. É o caso de um bando de pássaros infestados por piolhos. A ave não consegue remover o parasita da própria cabeça com seu bico, mas pode fazê-lo em favor de outro membro do grupo. Melhor então que todos se ajudem, certo? Bom, um espertinho pode valer-se da boa vontade do bando e negar-se a retribuir o favor – e estaria levando vantagem sobre os demais pássaros. Ponto para o gene espertinho?

Na simulação feita por Dawkins, o bando de aves é formado por dois tipos de indivíduos: ‘tolos’, sempre dispostos a coçar a cabeça dos outros, e ‘trapaceiros’, que nunca o fazem. Numa situação assim, por menor que seja o prejuízo causado pelos piolhos, os ‘tolos’ tendem a ser subjugados: gastam tempo e energia para ajudar o resto do bando, mas têm as mesmas chances que os ‘trapaceiros’ de se livrar da praga. Em algumas gerações, os ‘tolos’ terão sucumbidos, e o bando de trapaceiros, infestado de piolhos, não se sairá muito melhor. Dawkins então simula a sorte de uma população formada não apenas por ‘tolos’ e ‘trapaceiros’, mas também por ‘rancorosos’ – indivíduos que lembram se já foram trapaceados e, neste caso, se negam a prestar novos favores ao espertinho. Para um bando com muitos ‘trapaceiros’, o pássaro ‘rancoroso’ não terá muito mais sucesso que o ‘tolo’, pois será enganado muitas vezes até que conheça todos os trapaceiros. Mas se houver uma proporção minimamente significativa de rancorosos, são os trapaceiros que passarão dificuldade: aqui e ali, ainda obterão os favores de algum tolo, mas sua desvantagem será cada vez maior. Em algumas gerações, o bando se verá praticamente livre dos genes trapaceiros.

O valor da integridade – Uma sociedade que sabe punir a trapaça pode conviver bem com algumas aparentes ‘tolices’. Na Alemanha, para espanto dos turistas, são os próprios passageiros que cuidam de pagar corretamente pela passagem de ônibus e metrô. Sem catraca, nem cobrador, nada mais simples do que burlar o sistema – cunhou-se até uma expressão para isso, ‘schwarzfahren’. A única coisa que impede o sistema de sucumbir à proliferação de trapaceiros é – além da decência – o risco de multa em caso de fiscalização, que recentemente subiu de 40 euros para 60 euros (221 reais) e pode dobrar em caso de reincidência. Na vizinha Dinamarca, pequenos agricultores deixam frutas e verduras à venda em barraquinhas à beira de estrada, chamadas ‘vejboder’, sem qualquer supervisão: o cliente escolhe o produto, leva o quer, calcula o preço da compra e se precisar ainda retira o troco do caixa.

‘A maioria das pessoas acredita que cultivar a integridade é algo como comer verdura, ou seja, algo que você deve fazer, gostando ou não’, diz ao site de VEJA a colunista de economia Anna Bernasek, autora de A Integridade na Economia. ‘Mas, na verdade, integridade é uma oportunidade, não uma obrigação. Por meio dela, você constrói confiança e, assim, gera riqueza. E o interessante é que se trata de um recurso compartilhado. Todo sistema lucra quando se investe em confiança. Pode ser tentador tirar vantagem dos outros, mas esta não é uma estratégia de longo prazo e, no fim, destrói riqueza.’ Bernasek observa que escândalos em série noticiados na imprensa podem transmitir, particularmente em países de baixa confiança, a percepção equivocada de que as pessoas são todas desonestas. ‘Mas, para cada escândalo, existem literalmente milhões de transações – compras, vendas, empréstimos – em que as pessoas envolvidas seguem altos padrões de integridade e confiança mútua’, diz. ‘A economia global depende disso. Então, se você acha que deve trapacear para chegar à frente, você está perdendo de vista o quadro maior. A verdadeira riqueza, a riqueza duradoura, é construído por aumentos constantes na confiança e integridade.’

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