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Deixem Paula Fernandes em paz

A cantora mineira falhou feio no dueto com Andrea Bocelli. Mas ele também não é essa Coca-Cola toda

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 21h31 - Publicado em 21 out 2016, 12h24

 

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Na semana passada, a sertaneja mineira Paula Fernandes foi protagonista de um vexame. Durante uma apresentação ao lado do tenor italiano Andrea Bocelli, ocorrida no estádio do Palmeiras, ela se esqueceu de cantar sua parte na música Vivo per Lei (em português, Vivo por Ela). Paula até que se saiu bem no primeiro trecho da canção. Bocelli fez sua estrofe e caberia à sertaneja se encarregar do refrão. Paula, no entanto, ficou muda e deixou Bocelli no vácuo. O tenor, então, assumiu os vocais e carregou a canção até o fim. Pior do que a falha de Paula foi a justificativa que ela encontrou para tentar consertar o erro: a intérprete de Pássaro de Fogo – que, diga-se, não é aquele do russo Igor Stravinski – alegou que haveria uma terceira cantora no palco, mas que ela teria cancelado sua participação momentos antes de Paula e Bocelli entrarem em cena. A tal cantora, a soprano cubana Maria Aleida, já desmentiu a fantasiosa versão de Paula Fernandes. E, convenhamos, seria muito mais nobre a sertaneja admitir que foi acometida por um branco ou que se sentiu intimidada ao cantar com a orquestra, um desafio até mesmo para cantores escaldados por décadas de carreira. Mas a reação dos fãs de Bocelli e de certos “críticos de música” (do mesmo naipe dos especialistas em política e economia que abundam nas redes sociais) foram tão estapafúrdias, exageradas e amadoras quanto a desculpa esfarrapada da intérprete mineira. Porque, convenhamos, Bocelli nunca foi um grande cantor, muito menos um talento do universo da ópera. Além disso, sua produção deveria ter tido mais cuidado ao escolher uma parceira adequada para o tal dueto – e não se limitar a pinçar uma artista que pertence à mesma gravadora do cantor italiano.

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Mas, afinal, qual a relevância artística de Andrea Bocelli? Nenhuma, claro. O italiano nada mais é que um efeito colateral do sucesso dos Três Tenores. Explicando melhor: em 1990, os tenores Luciano Pavarotti, José Carreras e Placido Domingo, além do maestro indiano Zubin Mehta, se reuniram nas termas de Caracalla, em Roma, para um concerto no qual interpretariam árias de ópera e cançonetas populares. O evento fazia parte dos festejos da Copa do Mundo de futebol e a renda seria revertida para uma instituição de caridade mantida por Carreras, que recentemente havia se curado de uma leucemia. O álbum dessa reunião vendeu 25 milhões de cópias, se tornando o disco de música clássica mais bem sucedido da história. Ele também despertou a ganância e a volúpia dos executivos de gravadora do mercado erudito, que sempre lidaram com altos custos de produção – seja em forma de registros de ópera ou gravações de orquestras – e vendas cada vez menores. A solução, pensaram, está em fazer os astros de seu cast lançando disco com pequenos trechos de ópera (as chamadas árias) ou uma compilação de movimentos de sinfonias. Os mais puristas reclamaram – e com razão. O maestro italiano Claudio Abbado (1933-2014) batizou o efeito como minestrone (aquele sopão que junta vários ingredientes) e bateu de frente com sua gravadora, a Deutsche Grammophon, que lançou à sua revelia uma coletânea de adágios. Outros, como Luciano Pavarotti, abraçaram a ideia com entusiasmo. Pavarotti, claro, nunca foi muito afeito ao trabalho, visto seus cancelamentos em cima da hora que levaram à loucura os executivos da Metropolitan Opera (Nova York). O minestrone musical foi uma iniciativa e tanto para que ele preservasse a voz em troca de pequenas participações e até duetos com artistas do universo pop – como U2 e Vanessa Williams. Com o passar do tempo, as gravadoras passaram a lançar de mão de músicos e intérpretes que não têm compromisso algum com os dogmas eruditos. E tome Três Tenores Irlandeses, Vanessa Mae (violinista, uma pré-Andre Rieu made in Singapura) e Il Volo, meninos marombados que lançaram um tributo aos Três Tenores e que irão abrir os concertos de Mariah Carey no Brasil. E, claro, Andrea Bocelli, vendido como o maior tenor do mundo.

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Bocelli, de fato, é um cantor competente. Contudo, não é somente a voz que faz a fama de um tenor, mas sim a força de sua interpretação. O italiano tem um timbre bonito, porém não passa de um cantor popular que emposta a voz e abusa dos vibratos para dar a falsa impressão de que canta ópera. O gênero, aliás, necessita de uma força de interpretação que Bocelli não tem. Nesse quesito, ele é o Francisco Cuoco, o Leonardo DiCaprio do repertório operístico: faz tudo do mesmo jeito. Falta luxúria nas árias do Duque de Mântua, de O Rigoletto, não tem a angústia do presidiário Mario Cavaradossi, de Tosca. Muito menos possui a inocência e jovialidade de Rodolfo, personagem de La Boheme. Para um público de ouvido menos treinado, tem-se a impressão de que Bocelli é o novo Pavarotti. Nada disso, basta correr em qualquer site de streaming e escutar as gravações antigas do tenor italiano ou mesmo do francês Roberto Alagna ou do alemão Jonas Kaufmann, para ficarmos em dois nomes de alta rotação no mundo operístico. E quando Bocelli decide encarar um repertório lírico desafiador, seus resultados são constrangedores. Em 2003, ele foi escalado para gravar o Requiem, de Giuseppe Verdi, ao lado do maestro russo Valery Gergiev e da soprano americana Rennee Fleming. O crítico inglês Norman Lebrecht comparou a performance de Bocelli como a de um “peladeiro de domingo que se acha em condições de disputar a final da Copa do Mundo.”

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O amor por Bocelli passa também pelo surrado culto à superação. O tenor nasceu com glaucoma congênito. Perdeu de vez a capacidade de enxergar aos doze anos, num acidente num jogo de futebol – ele era goleiro e levou uma bolada no olho. Bocelli representaria então a vitória do ser humano contra as adversidades. É mais ou menos o mesmo sentimento de admiração que toma conta das pessoas que vão assistir à Bachiana Filarmônica, de João Carlos Martins (ex-pianista e que assumiu a regência após perder o movimento das mãos) e ser possuído pela sensação de ter assistido a um recital da Filarmônica de Berlim. O critério artístico, nesse caso, tem de ser separado de todo o resto. É muito bonito ver alguém superar suas adversidades, mas isso não é levado em conta na análise de uma performance musical. Mais: há casos em que realmente um artista vence as condições desfavoráveis impostas pela vida e se torna um nome relevante no mercado erudito. Dois bons exemplos são o violinista israelense Itzhak Perlman, que ficou paralítico aos quatro anos, e o baixo barítono alemão Thomas Quasthoff – que, vítima da talidomida, não tem braços e tem a estatura de um anão. Quasthoff, aliás, se apresentou com regularidade em óperas até se aposentar, quatro anos atrás.

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Por fim, um grande artista erudito tem de possuir o mínimo critério na hora de escolher seus parceiros. Claudio Abbado largou a Filarmônica de Berlim ao descobrir que a orquestra faria um disco com uma banda de heavy metal. Mais do que uma atitude elitista, significa que ele tem respeito por tudo o que construiu ao longo da carreira e que jamais abraçaria um projeto no qual ele não confia em troca de um punhado extra de euros na sua conta bancária. Bocelli, por seu turno, topa tudo. Em nome de uma “popularização” do mercado erudito, que no fundo significa destruir um repertório belíssimo em nome do lucro fácil, ele trocou a arte pelo entretenimento. Mais ou menos como o violinista holandês André Rieu (abaixo, assista um vídeo no qual eu criei um guia para evitar as interpretações do pseudo-erudito). Bocelli emendou duetos duvidosos ao lado da inglesa Sarah Brightman e da canadense Celine Dion. No Brasil, submeteu-se à voz insossa de Sandy e semana passada encarou Anitta, Paula Fernandes e Daniel – aliás, o único que realmente mostrou talento  nesse minestrone operístico. Senhores, deixem Paula Fernandes em paz. E se me derem licença, vou escutar a versão dela para Tocando em Frente, de Renato Teixeira e Almir Sater, que possui mais sentimento e força de interpretação do que qualquer repertório operístico que Bocelli tenha destruído.

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