Toda vez que alguém fala na suposta fórmula de Hollywood para criar seus filmes e séries, acho a maior graça: que raio de fórmula é essa que resulta em tal quantidade de fiascos todos os anos? Até em algoritmos miraculosos da Netflix já se falou – teoricamente, o público gostou de Stranger Things porque a matemática avançada mapeou exatamente tudo que ele gostaria de ver em uma série (se forem os mesmos algoritmos que bolam a lista de “indicados para você”, falta muito chão ainda para eles funcionarem a contento, ou não me sugeririam – sério – a Galinha Pintadinha). É evidente que sim, estúdios, produtores, redes de TV e plataformas usam todos os recursos para tentar se aproximar da melhor alquimia possível com a plateia. E, no entanto, apesar desses recursos, da experiência e do traquejo, às vezes o que eles têm a oferecer é Punho de Ferro, a série produzida em colaboração com a Netflix que é o mais completo erro da Marvel desde que ela fincou sua bandeira de “eu mando aqui” no universo pop com o primeiro Homem de Ferro.
Como pode ser que a parceria que rendeu o excelente Jessica Jones, o muito bom Demolidor e o quase sempre interessante Luke Cage troque os pés pelas mãos de tal forma? Uma explicação a cogitar é que talvez também os produtores de entretenimento às vezes acreditem estar de posse de uma fórmula certeira: há o suficiente de contornos dessas outras três séries em Punho de Ferro para que ela pareça se alinhar com elas. O que não há é conteúdo capaz de sustentar essa aparência. Jessica Jones trafega no drama quase realista – relações abusivas, as sequelas psíquicas das vítimas de trauma, o narcisismo e a infantilidade que estão na raiz da psicopatia de um homem como o vilão estupendamente interpretado por David Tennant. Demolidor tem um viés noir acentuado, e vai fundo na violência urbana e na sensação generalizada de insegurança e decadência. Luke Cage discute de maneiras originais, às vezes até iluminadoras, a complexidade das relações raciais – e tem ainda muito a dizer sobre moralidade.
Já Punho de Ferro…
Punho de Ferro tem Danny Rand (o pouco empolgante Finn Jones), dado como morto, aos 10 anos, em um acidente aéreo no Himalaia, junto com seu pai e sua mãe. Quinze anos depois, Danny reaparece em Nova York, usando bata e calça de algodão cru e com os pés descalços – mas ainda assim espanta-se de verdade quando o tomam por impostor e não o deixam entrar na sede da Corporação Rand, da qual ele deveria ser sócio majoritário (não fosse o detalhe da sua morte, claro). A empresa está agora nas mãos dos seus amigos de infância, os irmãos Ward (Tom Pelphrey) e Joy Meachum (Jessica Stroup). Já na adolescência Ward era um idiota presunçoso, e continua a sê-lo. Mas dou o devido desconto a ele por achar que Danny é um sem-teto com problemas psiquiátricos; quem não acharia? Ainda mais porque, tomado seguidas vezes por várias pessoas diferentes por isso mesmo – um morador de rua com transtornos mentais –, Danny não se toca: não lhe ocorre que tomar banho, pôr roupas limpas e calçar ao menos um par de chinelos evitaria esses sucessivos e cansativos mal-entendidos. O que levanta outra questão: quantas vezes um roteirista consegue usar o mesmo truque antes de se cansar dele? Mais vezes do que a plateia, com certeza.
Vi os seis episódios iniciais do total de treze desta primeira temporada, e com boa vontade e bastante concentração dá para perceber que Punho de Ferro quer falar da inveja e rivalidade entre irmãos (ainda que irmãos postiços, como Ward e Danny), de figuras paternas merecedoras ou não do desejo de aprovação que elas suscitam, e das formas como nunca obter essa aprovação pode distorcer o caráter. Ora, é não é que há bastante assunto aí? Mas Punho de Ferro estiiiiiiiiiiiica esses conflitos básicos até deixar o espectador entorpecido – e só aí vai len-ta-men-te recobrando o passo. Já perdi a conta de quantas vezes Ward olhou com olhos de ódio para Danny, e Danny não percebeu; quantas vezes Joy se perguntou se é ou não uma boa pessoa por apoiar as decisões do irmão (jura, Joy, que é tão difícil assim?); quantas vezes uma certa figura misteriosa humilhou Ward, e não notou que mais uma ou duas dessas e Ward vai sair do seu controle; e quantas vezes a karateca Colleen (a simpática Jessica Henwick) disse para Danny que não pode mais ajudá-lo, e então amoleceu e o ajudou. Pode ser que já no sétimo episódio Punho de Ferro vire um estrondo e tudo isso tenha valido a pena. Tenho minhas dúvidas. Até na paleta de cores a série é monótona: contra os rubros e negros de Demolidor, as cores ácidas de Jessica Jones ou os pastéis sujos de Luke Cage, o que ela tem a oferecer são cinzas e beges neutros e azuis frios.
Não bastasse o eterno andar em círculos de Punho de Ferro, sua mitologia é a mais difícil de engolir de todas as séries Marvel/Netflix até aqui (ou talvez o problema seja a maneira infantil como ela é apresentada; mas o resultado prático é o mesmo). Danny passou esses quinze anos em uma espécie de reino entre o céu e a terra, K’un Lun, treinando com os monges da Mãe Garça ou algo que o valha – e ele não hesita em contar essa história para qualquer um, e sempre se magoa quando não acreditam que ela seja possível. Lá em K’un Lun, Danny descobriu que era o Punho de Ferro, único guerreiro capaz de derrotar a ordem do Tentáculo (que já fez aparições bem mais estimulantes em Demolidor). No sexto episódio, apresentou-se a possibilidade de ele lutar com a idosa Madame Gao (a excelente Wai Ching Ho), e vibrei: será que ia rolar uma daquelas cenas como as que a formidável Cheng Pei-Pei protagonizou até uma idade considerável? Mas não – oportunidade desperdiçada.
Até o punho de ferro em si é uma decepção: Danny adora lutar kung fu, e deve ser por isso que ele apanha aos montes antes de ficar realmente bravo e convocar seu superpoder – basicamente, uma mão direita meio inchada, iluminada por dentro com um laranja fosforecente (pensando bem, lembra muito uma lava lamp). Em comparação, a decidida Colleen quebra o braço do adversário ou pega a katana e resolve qualquer luta em segundos, sem fazer estrago à sua volta e sem perder tempo. Mas isso de não perder tempo é um conceito que, até aqui, tem se mostrado estranho a Punho de Ferro.