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O grande chef muda de vida

O espanhol Ferrán Adrià já alcançou todos os títulos que um chef poderia sonhar, inclusive as cobiçadas três estrelas do Guia Michelin. Aos 49 anos, decidiu mudar: fechará o premiado restaurante elBulli para transformá-lo em fundação

Por Ana Clara Costa
27 Maio 2011, 23h35

“O desafio é o que me interessa. Quando não há desafio, é porque você está morto”

Quem se perder pelas estradas sinuosas da Costa Brava espanhola em agosto desde ano, em pleno verão europeu, não terá a sorte de encontrar, espremido entre o mar e montanhas, o melhor restaurante do mundo. O elBulli, exclusivíssimo centro de criação do chef catalão Ferrán Adrià, encerrará suas atividades em 31 de julho, para nunca mais – pelo menos, não nos moldes atuais.

Desde o início de 2010, Adrià ventila a intenção de transformar seu reduto em uma fundação sem fins lucrativos voltada à gastronomia. Nela deverão trabalhar cerca de 25 colaboradores, entre fixos e temporários, com uma única tarefa: criar. “Queremos pessoas criativas e formadas, pois aqui não será nenhum centro de formação”, afirmou o chef em entrevista exclusiva ao site de VEJA. As ideias inovadoras que surgirem dos experimentos serão divulgadas, quase que simultaneamente, na internet. “O objetivo é que as ideias inspirem as pessoas. Mas não vamos divulgar receitas”, acrescentou. A empreitada funcionará no mesmo lugar onde se encontra o restaurante: a praia de Cala Montjoi, na cidade de Roses, a 170 quilômetros de Barcelona.

Adrià garante que a fundação, que levará o mesmo nome do restaurante, continuará recebendo o público. “Ainda estamos desenhando como isso será feito, mas a ideia é receber todos que estiverem interessados em conhecer o projeto”, conta. Ao dizer ‘todos’, ele exagera. Afinal, ao longo de 20 anos à frente do elBulli, o chef fez questão de mantê-lo exclusivo. Com apenas 60 lugares, ele fica aberto somente seis meses por ano. “Bem, provavelmente será tão concorrido quanto o restaurante, mas a proposta será outra. Então será um outro público”, diz, sem deixar de ressaltar que ainda há tempo para planejar – a empreitada não ficará pronta antes de 2014.

A ideia de encerrar um projeto de sucesso e iniciar outro completamente incerto, e sem garantia de retorno financeiro, representa uma etapa desafiadora na vida de Adrià. Nascido em uma família de classe média, sem contato com a alta gastronomia, ele lavou pratos, cozinhou em quartéis militares e surpreendeu o mundo ao desconstruir a nouvelle cuisine e transformar a culinária. Muitos o apontam, não apenas como um chef excepcional, mas também como um grande químico – tamanha sua capacidade de transformar os sabores e as texturas dos alimentos em verdadeiras obras de arte. De seu passado humilde, ele parece não guardar recordações ruins. “Sou uma pessoa de sorte, realizada. Não posso me queixar de nada”.

Veja outros profissionais que, no auge, também decidiram mudar os rumos de suas carreiras

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O que inspirou essa decisão de transformar o elBulli em um centro criativo?

A história do elBulli sempre foi de transformação. É o caminho natural das coisas. Precisávamos de um novo cenário para criar, e aqui nessa praia é ideal. Além disso, é preciso reconhecer que o tempo passa e que é preciso deixar espaço para os novos, pois o El Bulli é um restaurante que monopoliza muito a cozinha de vanguarda.

Você estava insatisfeito?

De forma alguma. Se estivesse insatisfeito, fecharia o restaurante, deixaria tudo e partiria pelo mundo dando palestras. Mas se fizesse isso, não haveria desafio nem estímulo à criatividade. O elBulli é uma espécie de mito, e isso gera muita curiosidade por parte das pessoas. O que vai acontecer agora é que iremos mudar o modelo, o formato. Não significa que o elBulli não existirá mais.

Como será esse modelo?

Vai ser basicamente muito parecido. Hoje, nós lidamos com criação e muita produção. O que muda, a partir de agora, é a proporção. Vamos criar muito mais do que produzir.

E não haverá contato com o público?

Sim. Precisaremos de um feedback. Não será da forma convencional, com reservas, como é o restaurante. Contudo, vamos abrir as portas para visitas, para que as pessoas conheçam o projeto. Quem sabe um dia, começaremos a trazer pessoas para jantar também. Ainda estamos desenhando como isso será feito, mas a ideia é receber todos que estiverem interessados em conhecer o novo elBulli.

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Qualquer pessoa?

Bem, provavelmente será tão concorrido quanto o restaurante, mas a proposta será outra. Então será um outro público.

Poderia descrever como foi o momento em que decidiu que era hora de mudar?

Meu trabalho principal sempre foi ser capaz de olhar para o futuro. Então, para me adiantar ao que poderia acontecer, optei pela fundação. Eu via que, perto de 2015, nós poderíamos chegar a um certo tipo de esgotamento no restaurante. Para que isso não acontecesse, decidi mudar. Na verdade, eu e minha equipe queríamos uma mudança. Todos têm família, filhos, e queriam mais tempo para estar com os seus. Por isso essa decisão foi importante.

Quer dizer que você cansou do ritmo?

Queria sim fazer algo mais leve. Há 20 anos, trabalho 20 horas por dia, 340 dias por ano. Então é normal querer um pouco mais de tranquilidade, ter férias e tudo mais. Isso não significa que eu esteja cansado porque não estou. Temos 50 projetos para tocar, já fizemos 13 livros, dois filmes e uma exposição. Se estivermos cansados, vamos para a praia, que é aqui do lado.

E não teve medo de abrir mão de tudo?

Não. O desafio é o que me interessa. Quando não há desafio, é porque você está morto.

O fato de o elBulli não figurar mais nas listas dos melhores restaurantes do mundo não lhe causa estranheza?

Não. E sabe por quê?

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Por quê?

Porque eu já ganhei todos os prêmios que poderia sonhar. Seria ruim se nunca tivesse ganhado nada, mas felizmente não paro de receber prêmios.

Qual foi o maior prêmio que já recebeu?

Ser professor convidado em Harvard, sem dúvida.

O fato de estar em Harvard influenciou sua decisão de mudar de vida?

Na verdade, trata-se de uma coisa a mais na minha carreira. Não foi um fator crucial. No entanto, é claro que ser professor convidado ali por cinco anos me ajudou a pensar melhor a minha fundação.

Como a sua fundação se financiará?

É uma fundação privada com dinheiro meu. No momento, temos uma parceria com a Telefonica, que é extremamente importante. Mas estamos buscando mais patrocinadores.

Continuará fazendo trabalhos de consultoria?

Certamente. Preciso buscar dinheiro para a fundação, não é?

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Na sua opinião, o que é criar? É um processo longo?

Criar é parte da minha vida. É normal. Levanto todas as manhãs e tenho de criar algo. E não há uma regra para isso. Há coisas que são criadas em um dia, outras em semanas, outras em meses. É algo do dia a dia, mas que também é muito complexo de quantificar.

Seu objetivo com a fundação é treinar pessoas com o potencial de revolucionar a gastronomia?

Digamos que meu objetivo é ajudar a criar gente boa. Se você pega a lista da Restaurant Magazine, os sete restaurantes que estão abaixo do elBulli possuem pessoas que vieram dele.

A liderança em inovação do elBulli inspirou até mesmo a Microsoft Espanha a mudar alguns modelos de inovação. Como você se sente ao saber que inspirou uma empresa ícone em inovação a mudar?

Quando trabalhamos, não prestamos atenção nas consequências, mas sempre é bonito ver seu trabalho reconhecido. A sensação é boa, mas temos que recordar que há momentos na vida em que as coisas não são assim, são mais tristes.

Esses momentos tristes chegaram para você?

Na verdade, não. Não posso me queixar de nada. Só tenho a agradecer à vida.

Há uma mudança em curso na relação do homem com o alimento?

Continuamente. Desde que o homo sapiens descobriu o fogo, a cozinha é sempre uma transformação. Felizmente, em muitos países do mundo já não há fome. Infelizmente, em outros ainda há. Mas cerca de 60% da população mundial já não padece mais desses problema – e, para essas pessoas, cada vez mais a comida se transforma em prazer e em experiência. Enxergar o alimento desta forma é uma das mudanças culturais mais revolucionárias dos últimos séculos. Antes esse benefício era apenas dos muito ricos ou da nobreza. Hoje, qualquer pessoa normal pode desfrutar de momentos muito agradáveis durante uma refeição.

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Além de criar, sua fundação também irá disseminar receitas?

Iremos disseminar ideias. Não queremos que haja cópia, e sim estimular as pessoas a criar. Para isso, vamos usar a internet. O objetivo é que as ideias inspirem as pessoas. Então, não vamos divulgar receitas, apenas técnicas e sugestões para que os profissionais que não têm tempo de pesquisar possam se inspirar.

No processo seletivo para colaboradores, haverá espaço para outros países, como o Brasil?

Sim. Haverá uma seleção muito difícil porque queremos gente criativa. Não queremos jovens para formar, mas sim gente com formação e muita vontade de criar.

Profissionais mais velhos?

A idade não é um impedimento. Pode ter 20 ou 60 anos, desde que tenha criatividade e ousadia.

Haverá algum tipo de seleção por país?

Poderemos firmar acordos. Por exemplo, se firmarmos com o Brasil, o país poderia nos mandar aquele que será seu próximo Alex Atala; ou o próprio Atala poderia ajudar a escolher esse nome. Contudo, ainda é muito cedo para esse tipo de plano. Afinal, só vamos começar em 2014.

Você convidará chefs renomados, como o próprio Atala, para colaborarem com sua fundação?

O Alex Atala é meu amigo. Ele pode vir quando quiser. Não precisa ser convidado.

Há perspectivas para que o Brasil tenha algo feito por Ferrán Adrià?

Estamos pensando em levar o Ticket – restaurante de tapas criado em sociedade com meu irmão Albert Adrià – para outros países do mundo, mas ainda não há nada certo. Há prós e contras que estamos estudando. E estamos vendo isso sem pressa, porque temos muito trabalho nesse momento.

Você já tem uma nova data para visitar o Brasil?

Em fevereiro ou março de 2012.

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