Tendência de aumento da dívida pública impõe desafio urgente para governo
Se gestão Lula não priorizar controle das contas, a situação pode se agravar e ameaçar o desempenho da economia
Uma frase lapidar da música O Bêbado e a Equilibrista, dos compositores João Bosco e Aldir Blanc, expressou, com rara poesia, o fio tênue que separava o otimismo do desalento nos tempos da ditadura militar: “A esperança dança na corda bamba de sombrinha”. Décadas depois, a citação pode ser usada para definir os desafios que estão diante do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Na linha de frente do governo, Haddad tenta equilibrar-se entre a responsabilidade fiscal e o desejo irrefreável de seu chefe, o presidente Lula, de gastar. Um novo sinal desse descompasso foi revelado na quarta-feira, 7, quando o Banco Central divulgou os últimos dados orçamentários de 2023. No ano passado, a dívida bruta do setor público, compreendendo União, estados e municípios, subiu para 74,3% do Produto Interno Bruto, alcançando 8,1 trilhões de reais. De forma simplificada, a dívida é resultado dos empréstimos feitos por entes de governo com o objetivo de custear a máquina pública. E, sob gestões petistas, as despesas com a engrenagem estatal costumam explodir.
O resultado se deve ao déficit de 249 bilhões de reais que o governo registrou em 2023, o pior desde a pandemia e o segundo maior da história. Ainda que se considere que houve pagamentos extraordinários, como o de precatórios (leia o artigo de Alexandre Schwartsman na pág. 47), foi um revés para o ministro Haddad. “É impossível fazer uma política fiscal com base em cortes relevantes de gasto com um orçamento tão rígido e com o Executivo e o Legislativo disputando onde vão gastar”, diz o economista Marcos Lisboa, que foi secretário de política econômica no governo Lula 1.
É certo que o patamar da dívida pública não indica um cenário de calamidade. Mas inspira preocupação. Especialmente pela sua linha de evolução. Quando se olha para o histórico do Brasil, o crescimento médio anual da economia nos últimos dez anos foi de 0,6%. Ao mesmo tempo, a dívida aumentou de 51,5% em 2013 para 74,3% em 2023, representando um avanço acima de 2% ao ano. Significa dizer que, a cada 0,1 ponto percentual de crescimento do PIB, a dívida subiu 0,4 ponto. Se essa proporção for mantida pelos próximos anos, o cenário se complica. Atualmente, o Brasil se aproxima da relação da dívida com o PIB de Índia (89%) e China (77%). Mas esses são países de crescimento econômico forte. Outros grandes emergentes, como México, Indonésia e Turquia, têm dívidas que equivalem a menos de 50% do PIB. Esse é o patamar de endividamento em que o Brasil, por ser uma economia em desenvolvimento, deveria se manter, consideram os analistas econômicos.
Felizmente, há alguns fatores que podem ajudar. “Devemos ver neste ano uma recomposição de preços de commodities, o que favorece o Brasil, afasta a possibilidade de descontrole e nos dá um fôlego adicional”, diz Alex Agostini, economista-chefe da Austin Ratings, agência brasileira de classificação de risco. Ainda assim, a Austin prevê que o endividamento chegará a 77% do PIB neste ano e a 80% em 2025. Como a Austin, as agências internacionais S&P e Moody’s preveem um inchaço da dívida brasileira nos próximos anos. A primeira estima que chegará a 83% do PIB até 2026, enquanto a segunda espera incremento para 81% do PIB até o fim do ano que vem. “A política fiscal neste governo é mais expansiva, mas a questão da dívida é uma fraqueza histórica do Brasil”, afirma Manuel Orozco, diretor da S&P e analista da América Latina. Apesar da preocupação, a S&P elevou recentemente a nota de crédito brasileira. “Valorizamos a independência do Banco Central e as reformas recentes, como a tributária”, diz Orozco. “O ganho institucional importa mais do que a dívida, mas isso tem limite.”
Além do valor proporcional da dívida, é preciso olhar para a capacidade de o país absorver os débitos contraídos. No fechamento do ano, a poupança ficou em 982 bilhões de reais, abaixo do valor de 1,1 trilhão de reais registrado em 2022. “Essa riqueza potencial é aplicada em ativos financeiros, mas, embora o Brasil não esteja em crise fiscal, a situação preocupa por causa da trajetória”, diz o economista Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central. A composição da dívida pública é outro fator a ser avaliado. Um quarto dela equivale aos gastos com a previdência, que vencem no curto prazo e não são de fácil refinanciamento. A dívida também é considerada cara porque o padrão que baliza as emissões de títulos públicos para o seu financiamento é a taxa Selic, historicamente alta. No ano passado, a conta de juros foi de 718 bilhões de reais. “Mas há um processo de flexibilização da política monetária que contribui para a redução do custo e a estabilização da trajetória da dívida”, diz Rogério Ceron, secretário do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda.
Ao contar com a flexibilização da política monetária, o governo escolhe o caminho do controle da dívida por meio do aumento da arrecadação, sem otimização dos gastos obrigatórios nem cortes em outras frentes. Uma agenda de concessões de serviços públicos também poderia auxiliar na tarefa, mas isso tampouco está no radar da gestão Lula, que, ao contrário, trabalha para tentar reverter privatizações de administrações anteriores. Sendo assim, é melhor estar preparado: o Brasil provavelmente continuará dançando por um bom tempo na corda bamba.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879