Pressões e ameaças estrangeiras põem em risco o agronegócio do Brasil
Fundos e empresas apontam descaso com a Amazônia e provocam alvoroço no governo
A política ambiental do governo Jair Bolsonaro é como a crônica de uma tragédia anunciada. Mesmo antes de ser eleito, o então presidenciável conquistou parte do eleitorado com promessas polêmicas, como acabar com o Ministério do Meio Ambiente e abandonar o Acordo de Paris, o principal tratado internacional para conter as mudanças climáticas. Em meio às incertezas sobre a recuperação econômica após a crise causada pela pandemia de coronavírus, o governo percebeu que há grande risco de colher o que plantou: a debandada de investidores e represálias de empresas internacionais que compram produtos do agronegócio brasileiro. Além da pressão externa, disputas políticas dentro do governo fazem com que a gestão ambiental fique ainda mais atrapalhada. Enquanto o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, responde diretamente pela pasta, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, assumiu a liderança do Conselho Nacional da Amazônia e coordena os esforços para a resolução dos conflitos ambientais que envolvem a região.
No início deste mês, a maior empresa de processamento de alimentos da China, a Cofco International, anunciou que vai rastrear o processo de produção da soja proveniente do Brasil. A fiscalização visa a reduzir os danos ambientais no cerrado, a principal região de plantio no país. Uma das maiores produtoras de salmão do mundo, a empresa norueguesa Grieg Seafood excluiu uma subsidiária da Cargill de sua lista de fornecedores por ligações com o desmatamento ilegal no cerrado e na Amazônia. No mês passado, um grupo de 29 empresas de investimento de nove países, que juntas administram 3,7 trilhões de dólares, enviou uma carta a diplomatas brasileiros pedindo reuniões para debater a política ambiental do governo Bolsonaro. Na última terça-feira, 7, empresários brasileiros seguiram a mesma toada e enviaram uma carta ao vice-presidente em que cobram uma agenda sustentável. Em efeito dominó, a grita antes restrita a ONGs e ativistas agora passou de fato a ameaçar a estrutura do agronegócio, setor com melhor desempenho no PIB do país. Para a presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds), Marina Grossi, há um limite para o que as empresas envolvidas na produção agrícola conseguem fazer sozinhas. “A marca do Brasil é associada à manutenção das florestas, à busca da conservação e da sustentabilidade na produção. A Amazônia também é emblemática nesse sentido, e isso sempre favoreceu os negócios no exterior”, explicou. É justamente essa imagem que está em perigo.
Para usar a expressão do ministro da Secretaria de Governo, General Luiz Eduardo Ramos, pode-se dizer que o governo federal “esticou a corda”. Pelo viés ambiental, o cabo começou a ser estirado nos primeiros meses do governo, com as queimadas na Amazônia. Um ano depois, às vésperas do novo período de incêndios, junho terminou com o maior número de focos de calor desde 2007, e a comunidade internacional preferiu não esperar para ver o que viria pela frente. Enquanto Bolsonaro ignora o Acordo de Paris, o tratado entra em vigor neste ano e as nações signatárias estão empenhadas em cumprir as metas para reduzir as emissões de carbono. Segundo servidores do Ministério da Agricultura, sob o comando da ministra Tereza Cristina, há riscos de a política ambiental influenciar a implementação do acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia, em estágio de revisão pelos governos. Por isso a atuação de Salles é essencial.
Até aqui, estamos perdendo terreno devido a iniciativas ridículas de certas áreas do governo. Recentemente, um grupo de empresas globais do setor de alimentos, finanças e varejo, como Burger King e Tesco, rebelou-se contra a intenção do Palácio de aprovar a Medida Provisória 910, conhecida como a MP da Grilagem, que prevê a regularização fundiária de áreas desmatadas ilegalmente. Juntas, as companhias estrangeiras divulgaram uma carta demonstrando preocupação. De acordo com Will Schreiber, coordenador do Retail Soy Group, que reúne os signatários do documento, o cerne da questão é a mensagem transmitida pelo governo. “O Brasil tem um legado forte em promover políticas consistentes de proteção ambiental. Basta pôr em prática mecanismos que já existem”, afirmou.
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Clique e AssineO setor madeireiro credencia-se como exemplo do que pode acontecer com o agronegócio. De acordo com um levantamento do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), que avaliou o mercado de madeira da Amazônia entre 1998 e 2018, o volume da produção destinado à exportação diminuiu de 14% do total para 9%. A resistência do setor em adotar práticas de manejo compatíveis com a preservação ambiental levou a um boicote realizado por compradores internacionais. Num período de vinte anos, as unidades em operação passaram de 72 para 49. “Tanto no setor madeireiro como na pecuária ou no cultivo de soja, há preocupação global com a degradação do ambiente. É essencial uma política pública consistente, que mostre que o Brasil está seguindo o caminho da sustentabilidade”, afirmou Leonardo Sobral, gerente do Imaflora.
Lastreada em centenas de bilhões de dólares, a pressão dos compradores internacionais e investidores incomodou. Com a imagem tisnada, o governo organizou um comitê de crise para consolidar uma resposta formal. Articulado pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e por Mourão, o grupo de trabalho que reúne os ministros do Meio Ambiente, da Agricultura, das Relações Exteriores e da Casa Civil se reuniu nas últimas semanas para traçar uma estratégia e tentar reverter a situação. Na terça, o presidente do BC, com trânsito entre os agentes de mercado, cobrou de Mourão uma perspectiva de diminuição dos impactos ambientais na região amazônica. Ouviu do vice que o governo não poderia se comprometer com a redução do desmate e cair em projeções erradas. Em paralelo, paira sobre a administração pública a denúncia de má gestão de recursos internacionais destinados à preservação ambiental. É o caso do Fundo Amazônia, uma conta no BNDES abastecida com doações da Noruega e da Alemanha para projetos que reduzam o desmatamento e que tem 1,5 bilhão de reais depositados sem destinação alguma. “O dinheiro está sem uso por omissão ou inação calculada do governo”, diz Suely Araújo, ex-presidente do Ibama.
No ano passado, a polêmica em torno das queimadas na Amazônia levou o presidente Jair Bolsonaro a decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), em que as Forças Armadas atuariam diretamente na fiscalização da floresta. Para isso, o Ministério da Defesa recebeu 600 milhões de reais, oriundos da repatriação de recursos feita pela Operação Lava-Jato. Em 2020, segundo o Ministério Público Federal (MPF), deveriam ser empregados 60 milhões de reais na operação, o que equivale a quase 80% de todo o orçamento anual do Ibama. No entanto, uma parte ínfima foi empenhada até o momento, o que resultou em uma ação de improbidade administrativa e um pedido do MPF para afastar Salles do cargo. O órgão o acusa de desestruturar dolosamente os mecanismos de proteção ambiental.
A insatisfação com a atuação de Salles tem crescido na ala militar. Contudo, entende-se nos gabinetes do Palácio do Planalto que ele representa um dos últimos resquícios da influência dos filhos do presidente no governo. Em meio ao fogo cruzado, o ministro aposta na divisão de responsabilidade. “Temas que competem exclusivamente a mim, como os Pagamentos por Serviços Ambientais e o Floresta+, por exemplo, estão resolvidos. Outras ações dependem da articulação da presidência do Conselho da Amazônia com os demais ministérios”, disse a VEJA. Apesar de chamar para si o mérito pela liberação de 500 milhões de reais para atividades que conservem a natureza, o projeto nasceu no governo de Temer.
Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, o monitoramento de desmatamentos por satélite registrou uma área de derrubada de 10 129 quilômetros quadrados, um aumento de 34% em comparação a 2018. Em 2012, o país havia alcançado a mínima histórica de 4 571 quilômetros quadrados. É inegável que a gestão ambiental nem sempre foi perfeita. O problema é que agora a má fama, devido à inação e às bravatas desnecessárias, ameaça contaminar o setor mais eficiente da economia.
Publicado em VEJA de 15 de julho de 2020, edição nº 2695