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Pressão das montadoras de veículos elétricos chineses cresce no Brasil

Marcas já estabelecidas no Brasil começam a reagir e contam com o empurrão do programa de incentivos federais Mobilidade Verde e Inovação (Mover)

Por Leandro Steiw
26 abr 2024, 06h00

O novo ciclo de investimentos na indústria automotiva brasileira — estimado em 142 bilhões de reais até 2032 — desenha dois horizontes no mercado: a concorrência inevitável das montadoras chinesas e o avanço dos veículos eletrificados. A reação das marcas já estabelecidas no Brasil precisou do empurrão do programa de incentivos federais Mobilidade Verde e Inovação (Mover), lançado na virada do ano. Ele prevê descontos na cobrança do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de veículos menos poluentes e mais seguros. O caminho dessa evolução converge para a tendência mundial dos carros eletrificados, tanto os 100% elétricos quanto os híbridos a combustão.

A volta, em dezembro de 2023, do imposto de importação, até então zerado ou reduzido para elétricos e híbridos, é outro indicativo do desconforto causado pela invasão dos produtos chineses. Os preços dos automóveis importados da China batiam de frente com os fabricados no Brasil. Agora as alíquotas aumentarão progressivamente até 2026, como tentativa de acelerar a transição de tecnologia e deslocar a produção para o parque industrial local. Desde janeiro deste ano nomes tradicionais no mercado brasileiro, um após outro, como General Motors, Volkswagen, Hyundai, Toyota, Mitsubishi e Stellantis, reagiram aos dois estímulos, com promessas de investimentos de 66,5 bilhões de reais. Somente a Stellantis, grupo que reúne Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën, planeja investir 30 bilhões de reais até 2030, uma cifra recorde. Outros 56 bilhões de reais já haviam sido anunciados pelas montadoras estabelecidas no país até 2023.

Antiga fábrica da Ford em Camaçari, na Bahia: agora nas mãos de montadora chinesa
Antiga fábrica da Ford em Camaçari, na Bahia: agora nas mãos de montadora chinesa (Antonio Milena/.)

Os sinais de desânimo no setor eram evidentes desde 2020. A Mercedes-Benz e a Toyota fecharam fábricas aqui e a Ford partiu em definitivo, encerrando um relacionamento centenário com o Brasil. Em contrapartida, três marcas chinesas deixaram clara a intenção de se fixar no país. A fábrica da Ford em Camaçari, na Bahia, foi comprada pela chinesa BYD, que anunciou o plano de destinar 5,5 bilhões de reais até 2028 para a produção de híbridos e elétricos. A Great Wall Motors (GWM) adquiriu a fábrica da Mercedes-Benz em Iracemápolis, no interior de São Paulo, e pretende inaugurar uma linha de montagem no segundo semestre — parte dos investimentos de 10 bilhões de reais até 2032. A brasileira Caoa, que produz modelos da chinesa Chery em Anápolis, em Goiás, deve investir 4,5 bilhões de reais até 2028.

A BYD está no Brasil desde 2013, com ônibus elétricos, módulos fotovoltaicos — ambos produzidos em Campinas, no interior paulista — e baterias de fosfato de ferro-lítio, fabricadas em Manaus. No ano passado, a BYD se tornou a maior fabricante mundial de veículos eletrificados, com 3 milhões de unidades vendidas. Ao ultrapassar a americana Tesla, até então líder do segmento, a empresa acabou alimentando a preocupação do bilionário Elon Musk. Em meio a elogios à capacidade dos rivais e a uma guerra de preços perdida, o CEO da Tesla sugeriu barreiras comerciais para os automóveis chineses nos Estados Unidos. Por enquanto, a BYD vende por lá apenas ônibus, por causa das altas taxas de importação, e reforça a sua estrutura de logística. Para reduzir a dependência do transporte marítimo e expandir as exportações para todos os continentes, os chineses estão construindo uma frota própria de navios, capazes de transportar milhares de carros.

Fábrica da Mercedes em Iracemápolis, no interior paulista: comprada pela chinesa GWM
Fábrica da Mercedes em Iracemápolis, no interior paulista: comprada pela chinesa GWM (Rubens Cavallari/Folhapress/.)

No Brasil, a BYD aposta que a necessidade de redução das emissões de gases do efeito estufa vai ser importante aliada para atrair consumidores. “A BYD apoia a política de transformação da indústria brasileira porque faz parte dela”, diz Alexandre Baldy, presidente do conselho de administração da montadora no Brasil. “Acreditamos que a transição é muito importante para que o país atraia investimentos e consiga implantar um parque industrial convergente com a evolução tecnológica global. Para isso, temos um carro com um avanço tecnológico disruptivo.” Da linha de montagem da BYD em Camaçari devem sair 150 000 veículos por ano — a inauguração está prevista para o primeiro semestre de 2025. Quando funcionar a pleno vapor, a capacidade prevista é de 450 000 unidades. A ambição da montadora chinesa não é pequena: quer figurar entre as três maiores do ramo no Brasil em até cinco anos. Pela distribuição de vendas atual, isso significaria conquistar 12% a 13% do mercado de automóveis e comerciais leves. Em fevereiro, a marca chegou ao 10º lugar e liderou o ranking de eletrificados.

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Outra fabricante chinesa, a GWM, remanejou recentemente a data de inauguração da fábrica em Iracemápolis, de maio para o segundo semestre deste ano. Em parte, o adiamento se deve à mudança do modelo de automóvel fabricado no Brasil, consequência da nova política de impostos do governo e dos incentivos fiscais do programa Mover. A GWM tenta aprender com erros de seus conterrâneos na fracassada primeira incursão pelo país. Em 2010, as primeiras montadoras da China a desembarcar aqui focaram no volume de vendas de carros a gasolina, com produtos baratos. O início foi promissor, e algumas marcas chegaram a emplacar cerca de 25 000 unidades por ano. No entanto, o mercado desacelerou em meio à crise econômica brasileira, com a queda acumulada de 6,6% do PIB em 2015-2016. Para complicar, aqueles veículos chineses ganharam fama de baixa qualidade no gosto do consumidor.

Uma década depois, o produto anunciado é outro. “Naquele período, a China estava dando os passos mais fortes para a eletrificação, e a experiência serviu para a GWM estudar o país”, diz Ricardo Bastos, diretor de assuntos institucionais da GWM Brasil. “O mercado brasileiro não é para amadores. Entrar nesse jogo para valer passa por alguns pontos importantes, e o primeiro deles é a questão tecnológica.”

É justamente a tecnologia que mexe com a concorrência. “Em duas décadas, o automóvel chinês evoluiu porque a indústria local ganhou eficiência operacional e produtiva”, diz Ricardo Bacellar, consultor da indústria da mobilidade. Infladas por subsídios estatais generosos e mão de obra farta e barata, as montadoras orientais contrataram a peso de ouro engenheiros, designers e profissionais de marketing, entre os mais competentes do planeta. Contaram também com a vantagem de as montadoras mais antigas terem demorado mais tempo do que as chinesas para entender que a nova onda estava no carro elétrico. “A China sabe como ninguém planejar no longo prazo e conhecia o retorno de investimentos tão pesados”, diz Bacellar.

Para o consultor, o custo dos carros chineses deve aumentar enquanto as montadoras estiverem acelerando a produção local, mas o embate tende a se igualar no médio prazo. Assim, os efeitos dos tributos enfraquecerão e as montadoras chinesas continuarão a produzir de forma muito mais barata. Um detalhe pode se tornar um trunfo importante para os asiáticos: a bateria representa cerca de 40% do custo de produção do veículo elétrico, e os maiores fornecedores estão na China.

O balanço da Anfavea, a associação nacional das montadoras, aponta que 7% dos automóveis e comerciais leves emplacados no país em janeiro e fevereiro de 2024 eram eletrificados. Desses, dois terços eram carros chineses. “A entrada dos chineses já é muito forte e deslocou a produção no Brasil”, diz Cassio Pagliarini, presidente da Bright Consulting, especializada no setor automotivo. “Não é uma mudança para daqui a cinco anos. Já está acontecendo.”

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Ponto de recarga de carro elétrico: a infraestrutura insuficiente é um entrave para a frota desse tipo crescer
Ponto de recarga de carro elétrico: a infraestrutura insuficiente é um entrave para a frota desse tipo crescer (Dirceu Portugal/Fotoarena/.)

Os novos competidores não vão encontrar só facilidades em terras brasileiras. Por aqui, o carro 100% elétrico e o híbrido a gasolina precisarão competir com os híbridos flex, nos quais o motor a explosão auxiliado pelo motor elétrico pode ser abastecido com etanol. Todas as empresas que aderiram ao programa Mover se comprometeram a fazer adaptação para os híbridos flex. Os chineses terão de seguir o mesmo caminho, sem abandonar a convicção na eletrificação total. “Defendemos que o Brasil privilegie o que tem de melhor, sem virar as costas para o que o mundo está fazendo, e os biocombustíveis estão aqui e temos tecnologia para usá-los”, diz Bastos, da GWM. Nessa direção, a BYD vai criar um centro de pesquisa na Bahia para desenvolver o seu motor híbrido flex.

A opção do etanol pode diferenciar o ritmo da transição no Brasil em relação ao resto do mundo. Um estudo da Anfavea com o Boston Consulting Group prevê que a renovação da frota será lenta e que, em 2035, 80% dos veículos leves e 90% dos pesados no país ainda circularão com motores flex e diesel. “O etanol já cumpre muito bem a função de redução de gases do efeito estufa”, diz Márcio de Lima Leite, presidente da Anfavea. Ele afirma que uma transição mais suave permitiria a queda gradual dos preços — impeditivo para a maioria dos consumidores brasileiros — e a criação de infraestrutura de carregamento dos veículos.

O mercado externo é um caminho indispensável para os chineses, porque o interno, embora dez vezes maior do que o brasileiro, dá sinais de retração. Atrasados na corrida tecnológica, a Europa e os Estados Unidos contêm a invasão criando barreiras tarifárias e abrindo investigações sobre subsídios e riscos à segurança nacional. Mesmo com a reação desencadeada pelas montadoras tradicionais, o cenário parece mais acolhedor no Brasil.

Publicado em VEJA, abril de 2024, edição VEJA Negócios nº 1

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