Petrobras: Bolsonaro confrontou Guedes e minou imagem liberal do governo
Ao tentar interferir no preço dos combustíveis, o presidente deixou economistas estarrecidos e provocou um terremoto no mercado
Se alguém, na semana passada, perguntasse ao presidente da República como estavam as relações entre ele e seu ministro da Economia, a resposta seria um misto de platitudes com elogios rasgados. Caso a mesma pergunta fosse feita a Paulo Guedes, o resultado provavelmente seria bem diferente. A decisão explosiva de Jair Bolsonaro de trocar o presidente da Petrobras, na sexta-feira 19, calou fundo no ministro. Roberto Castello Branco não apenas havia sido indicado por ele ao cargo como era parte do grupo egresso da Universidade de Chicago, berço do liberalismo moderno, recrutado para ajudá-lo a estruturar a diretriz econômica do governo. O rompante de Bolsonaro desagradou de tal forma a Guedes que ele não escondeu sua insatisfação em uma conversa que teve com o presidente, relatada a seus auxiliares. No diálogo, Guedes não economizou na terminologia militar tão cara a Bolsonaro. “Presidente, o senhor está ferindo o seu general. Na hora em que estou ganhando a batalha, o senhor me dá um tiro”. Bolsonaro respondeu: “Não estou dando tiro”. O ministro insistiu: “O mercado está achando que o senhor está me dando um tiro. O senhor está entrando na política econômica e falou que não iria entrar”.
Petrobras e o setor financeiro
Antes mesmo da oficialização da notícia, os rumores de possíveis mudanças na Petrobras provocavam um turbilhão de boatos no setor financeiro. Nos últimos meses, Bolsonaro já andava irritado com Castello Branco, mas a situação piorou na quinta-feira 18, quando ele autorizou reajustes nos preços do diesel e da gasolina justamente no momento em que os caminhoneiros ameaçavam entrar em greve (leia reportagem na pág. 32). Para o presidente, Castello Branco não estava cumprindo seu papel e tratou de deixar isso claro a Guedes na conversa. “Eu vi que eu tenho de nomear o presidente da Petrobras. Você indicou, mas eu tenho de nomear. O cara já ficou lá dois anos. O cara não tem sensibilidade com os caminhoneiros”, disparou. Sem bater de frente com o chefe, o ministro ponderou: “Do ponto de vista político, o senhor fuzilou o presidente da Petrobras e vai zerar os impostos para os caminhoneiros. O senhor tentou uma jogada política. Mas isso tem um efeito econômico terrível, um preço caríssimo”. Irredutível, o presidente manteve a sua posição — e ainda reclamou do comportamento que considerou histérico do mercado.
A canetada de Bolsonaro que colocará o general Joaquim Silva e Luna, ex-diretor-geral da Itaipu Binacional, no comando da Petrobras, de fato, custou caro à empresa e ao país. Em dois dias, as perdas estimadas foram de 400 bilhões de reais, somando a desvalorização da companhia, de 102 bilhões de reais, das demais estatais listadas na bolsa e (pior ainda) o aumento das despesas com juros devido à piora da percepção dos investidores estrangeiros em relação ao Brasil. “Era mais barato dar 100 bilhões de reais aos caminhoneiros”, desabafou Guedes a um integrante de sua equipe. A hecatombe já havia começado a se delinear na quarta 17, quando o presidente comunicou ao ministro sua intenção de trocar o comando da Petrobras. “Presidente, vai desmanchar. Vai ser um horror”, alertou Guedes. Mas Bolsonaro insistiu em sua escolha: “PG, você precisa acreditar. O nome é muito bom. O cara consertou Itaipu… Tomei facada, apanhei muito para chegar até aqui. Se eu tiver de errar, quero pagar pelos meus erros”. O ministro retrucou: “Tudo bem, o senhor tem voto. Eu não tenho. Agora, vai dar m…”. E deu. Nos Estados Unidos, acionistas internacionais preparam uma batalha judicial contra a ingerência na estatal. Na última vez que isso aconteceu, em 2018, a Petrobras teve de pagar 2,9 bilhões de dólares para encerrar uma disputa contra investidores que se sentiram lesados com o esquema de corrupção na companhia. Além disso, o compromisso de Bolsonaro com a agenda liberal, garantia do apoio do mercado que ele desdenhou, foi colocado em xeque por empresários nacionais e estrangeiros. Vale ressaltar que, através de seus investimentos, são eles que podem gerar emprego e renda, fundamentais para a retomada da economia.
Preços da Economia e Inflação
Em suas quase sete décadas de existência, a Petrobras tem sido sempre muito vulnerável aos desígnios do chefe de Estado do momento. Por seu tamanho, necessidade de investimentos e capacidade de influenciar os preços da economia, a empresa tem se transformado numa arma política a serviço do governante da ocasião. Serviu como espaço de manipulação para efeitos eleitoreiros, para estimular a atividade econômica, criar empregos, controlar a inflação e sustentar esquemas colossais de corrupção. De Getúlio Vargas a Dilma Rousseff, todos os presidentes intervieram na gestão da petrolífera, em menor ou maior medida. Dadas as promessas de campanha, acreditou-se que Bolsonaro não repetiria os desmandos do passado. Mas, ao desafiar o mercado nos últimos dias, deixou claro que ainda não rompeu com seu passado populista e equivocado, de deputado que votou contra o Plano Real, contra a quebra dos monopólios do petróleo e das telecomunicações. Em dois anos na Presidência, entre idas e vindas, ele tentou interferir nos preços dos combustíveis e dos alimentos, e pediu a cabeça, em janeiro, do presidente do Banco do Brasil, André Brandão. Em todos esses arroubos, voltou atrás e disse que não tinha a intenção de intervir na economia. A intempestividade na demissão de Castello Branco, entretanto, foi seu erro mais grave e de difícil contorno. “Bolsonaro jamais esperou que se meter assim na Petrobras teria tanto impacto”, avalia um importante nome da equipe econômica. Como resultado, o presidente perdeu os últimos crentes de que ele é seguidor da fé liberal. Sabe-se que ele veste a máscara quando lhe convém, mas que continua com o DNA corporativista. “O Brasil tem cada vez menos espaço nos portfólios globais”, diz Roberto Lee, fundador da corretora Avenue Securities, que concentra investidores brasileiros que desejam apostar no mercado americano. “Esse caso da Petrobras muda muito as premissas de investimento.” Hoje, o país tem a mesma nota de risco de Guatemala, Macedônia ou Grécia, uma avaliação pior até do que países como o Casaquistão. A reação do mercado começou já no domingo 21, quando analistas de instituições financeiras divulgaram relatórios, enviados a investidores do mundo todo, recomendando a venda de ações da Petrobras e de outras estatais sob o “risco Bolsonaro”. A avaliação é que com o alerta todos os ativos brasileiros desvalorizaram em 10%.
Tal situação, evidentemente, poderia ter sido evitada. Castello Branco chegaria ao fim de seu mandato na Petrobras no dia 20 de março. Se não fosse reconduzido ao cargo, mesmo que parecesse atípico, causaria um barulho muito menor. Mas Bolsonaro preferiu dar um recado aos caminhoneiros e também uma lição em um executivo pelo qual não nutria simpatia. O presidente já havia indicado a Castello Branco que desejava que a Petrobras fizesse reajustes de preços mais suaves. Não foi atendido. Na mesma quinta-feira, 18, que a estatal anunciou alta de 15,2% para o diesel e de 10,2% para a gasolina — a quarta do ano —, Bolsonaro disse, em live, que “alguma coisa” iria acontecer na Petrobras, e que “haveria consequências” para a fala de Castello Branco de que a empresa não teria nada a ver com os caminhoneiros. A declaração do presidente da Petrobras, no entanto, havia sido que o problema dos caminhoneiros tinha relação com um excesso de oferta e com o uso de caminhões antigos, que gastavam muito óleo diesel — fatores que a estatal não poderia solucionar.
Depois de Bolsonaro anunciar a indicação do general Silva e Luna, na noite da sexta-feira 19, os ataques a Castello Branco subiram de tom. Ele criticou o salário do executivo — que supera os 200 000 reais mensais e inclui mais doze bônus anuais no mesmo valor, podendo dobrar a remuneração — e o fato de ele, parte do grupo de risco para Covid-19, trabalhar remotamente há onze meses. Como se sabe, tal postura é considerada pelo presidente como uma afronta. No Palácio do Planalto, é como se a pandemia não existisse, com quase todos os funcionários circulando pelos andares e corredores sem máscara para agradar ao chefe. “Nunca houve uma transição tão belicosa como essa, com o presidente da República esculhambando o presidente da Petrobras publicamente”, lembra David Zylbersztajn, ex-diretor geral da Agência Nacional de Petróleo (ANP).
Apesar de desagradar ao presidente, a gestão de Castello Branco era avaliada de forma positiva pelo mercado e membros da equipe econômica. “Ele foi sacrificado por fazer um bom trabalho. O respeito aos preços internacionais dos combustíveis estava listado no programa de governo e era previsto”, diz Paulo Uebel, ex-secretário de desburocratização de Bolsonaro. Além disso, entre 2019 e 2020, a Petrobras amealhou 18 bilhões de dólares, com a venda de campos de petróleo maduros, geradoras de energia e gasodutos. A petrolífera, inclusive, desfez-se da participação que tinha na BR Distribuidora, o que garantiu o seu maior lucro na história, em 2019. A pandemia do coronavírus até pressionou os balanços da empresa, mas Castello Branco lançou mão de um programa de demissão voluntária e reduziu os custos ao adotar o teletrabalho para milhares de funcionários. Na noite da quarta-feira 24, aliás, a empresa anunciou lucro líquido de 59,9 bilhões de reais no quarto trimestre de 2020, revertendo o prejuízo que estava se configurando para o ano.
Preço do Combustível
A discussão em torno do preço dos combustíveis traz ainda uma ironia. Mesmo com os seguidos aumentos e a implicância de Bolsonaro, o mercado estima que os valores da Petrobras ainda estão abaixo do patamar internacional, devido à disparada do preços do petróleo e do dólar em relação ao real. Segundo a XP Investimentos, há uma defasagem de 8,6% do preço do diesel em relação ao preço de importação, prejudicando os resultados da estatal. E isso pode piorar. Os bancos de investimentos estimam que o barril de petróleo pode subir dos 65 dólares atuais para próximo dos 80 dólares, superando o patamar pré-pandemia. Ao mesmo tempo, sempre que Bolsonaro intervém na economia, o dólar se valoriza. Ou seja, o general Silva e Luna pode assumir a empresa sob duplo impacto nos preços.
Em sua defesa, depois do estrago causado, o presidente tem declarado que não vai intervir nas cotações, mas que apenas gostaria de dar mais transparência às decisões. Seria uma sábia decisão. Intervenções estatais em companhias de petróleo sempre causaram fortes prejuízos, tanto no Brasil (alguém lembra do petrolão?) quanto no exterior. “Entendo a tentação do governo, mas minha experiência mostra que é melhor não fazer subsídios governamentais”, afirmou a VEJA o venezuelano José Toro Hardy, ex-diretor da PDVSA de 1996 a 1999, estatal que era conhecida por um rígido processo seletivo para os seus comandantes. Alguns deles levando até seis meses de duração. Tudo mudou quando Hugo Chávez chegou ao poder e a PDVSA foi usada para sustentar o regime, o que deixou a empresa em frangalhos.
Para apagar o incêndio causado pelo presidente, Guedes procurou capitanear uma agenda positiva. Aconselhado pelo ministro e outros auxiliares do Palácio, Bolsonaro entregou nos últimos dias ao Congresso os projetos de privatização da Eletrobras e dos Correios. Também sancionou a autonomia do Banco Central. Sem a demissão de Castello Branco, teria sido uma semana de comemoração, histórica até. Mas ele conseguiu apagar o seu brilho, pois ainda pesam inúmeras incertezas sobre quando será a sua próxima recaída. Espera-se agora que o Congresso vote a PEC Emergencial com medidas de contenção e organização de despesas, junto com a volta do auxílio emergencial, o que não está muito fácil (veja reportagem na pág. 50).
Outra enorme preocupação neste momento é com a permanência de Guedes. Imbuído de um espírito público louvável, o ministro pretende deixar um legado de reformas para o país. Nos últimos tempos, no entanto, tem sofrido derrotas importantes. “Neste momento a relação de Guedes com Bolsonaro é a mesma daqueles casamentos em que o marido não suporta mais a voz da mulher e a mulher não suporta mais o ronco do marido. O desgaste é grande”, diz um ministro de alto cacife na Esplanada. Um sinal de que os reveses têm sido intensos é a revoada de nomes relevantes da equipe econômica. Companheiros de Guedes e Castello Branco em Chicago (também conhecidos como Oldies), os ex-presidentes do BNDES, Joaquim Levy, e do Banco do Brasil, Rubem Novaes, deixaram seus postos. Uebel e o empresário Salim Mattar, encarregados das privatizações, também pularam fora. Marcos Cintra, secretário da Receita, foi outro cortado. “A principal liderança nunca comprou a ideia do liberalismo econômico”, critica Cintra. “Ele é levado a contragosto, tem de ser convencido, e quer herdar todos os louros políticos como compensação do populismo que gostaria de implementar.” O resultado é um presidente que se diz convertido ao liberalismo, vende-se como tal, mas ao mesmo tempo intervém na economia. Tal dualidade é um risco real ao país hoje.
Colaboraram Luisa Purchio, Victor Irajá e Felipe Mendes
Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727