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O Brasil pode perder o controle da inflação?

A hiperinflação dos anos 1980 ainda está longe, mas dificuldades para ancorar as expectativas preocupa; saiba como o país domou o dragão, que agora ressurge

Por Carlos Valim, Luana Zanobia, Luisa Purchio, Victor Irajá, Felipe Mendes 10 out 2021, 14h00

O IBGE divulgou na sexta-feira, 8, que a inflação de doze meses acumulados até setembro atingiu 10,25%. Foi a primeira vez desde fevereiro de 2016 que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), a principal referência da inflação brasileira, superou os 10%. A dúvida que fica é se, depois de um ano considerando a inflação causada pela pandemia algo passageiro, o país pode perder o controle dos preços, dado o perigoso histórico nacional. O economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e conselheiro do think tank Centro Brasileiro para Relações Internacionais (Cebri, na sigla em inglês) declarou, para reportagem de capa da revista VEJA, que teme que muito do trabalho de controle feito na criação do Plano Real e nos anos posteriores pode ser colocado a perder. “Isso seria pior do que frustrante. Seria uma grande pena”, disse. “Nós estamos correndo esse risco, não há a menor dúvida, e seria gravíssimo. Não há como descrever isso de outra maneira. O que aconteceria se começassem a reindexar a economia? Seria horrível.”

Para o economista, a melhor forma de enfrentar esse risco seria que a sociedade decida qual o papel e o tamanho do estado que deseja para o Brasil, de modo que o rombo nas contas públicas seja diminuído e os gastos sejam direcionados ao que for considerado prioritário. “Uma resposta tecnocrática para como enfrentar a inflação atual seria fazer as reformas, para repensar as prioridades do gasto público do Brasil e estancar esse crescimento dos gastos. Por trás dessa proposta, estão decisões políticas de grande importância que claramente não estão sendo discutidas no momento, e uma reforma adequada do estado”, analisa. “Seria necessária a complementação da reforma da previdência, que deixou brechas, a eliminação de subsídios e buscar evitar gastos tributários regressivos que não fazem sentido. Há espaço para trabalhar esse assunto, mas isso não tem ocorrido. É uma questão que vai além da pandemia. Diz respeito à solidez das instituições brasileiras, algo que, inclusive, vem sendo testada.”

No momento o que acontece é uma dificuldade de domar as expectativas inflacionárias. Por 26 semanas seguidas, a projeção do IPCA para 2021, medida pelo Boletim Focus, do Banco Central, tem subido. Mas, mesmo se a tensão institucional entre os Podres e os problemas fiscais preocupam quem deseja investir no país, colocando em risco o controle da inflação, ainda assim poucos acreditam que o Brasil voltará a enfrentar uma hiperinflação, como a vivida nos anos 1980 e no começo dos 1990. “Hoje, estamos muito longe disso. Naquele tempo, o Brasil resolveu conviver com a inflação. Hoje em dia não, ninguém quer conviver com a inflação. Todo mundo está discutindo alternativas sobre qual é a melhor forma de combatê-la. Essa é principal diferença”, defende o economista Edmar Bacha, que foi um dos criadores do Plano Real e que está preparando um livro que deve se chamar “No país dos contrastes – da inflação ao Plano Real”.

Segundo ele, depois do golpe militar, o ministro do Planejamento Roberto Campos e o da Fazenda Otávio Bulhões optaram por uma política de estagflação, para baixar a inflação, que na época do governo de João Goulart rondava os 90%. Eles conseguiram a estabilizar em 20%. Mas a partir daí, da saída dos dois e da entrada de Delfim Netto, que assumiu a Fazenda em 1967, a opção do governo militar foi a de “pau na máquina”. “E aí apuraram todo o sistema de indexação de preços para poder conviver com a inflação, para que a inflação não tivesse tanto efeito negativo”, comenta Bacha. “Mas aí o que aconteceu é que, ao conviver com a inflação de 20%, rapidamente ela passou de 40%, para 80%, para 200%.”

E foi assim que uma inflação historicamente alta se tornou uma hiperinflação. “O Brasil foi um país que passou por inflação persistente por muito tempo. Tivemos alguns surtos como na Segunda Guerra Mundial e no governo Dutra com política ortodoxa e com uma série de questões histórica como a Guerra da Coreia. Mas o início desse processo agudo de inflação começou a partir dos anos 1950”, explica Heron do Carmo, um dos principais especialistas em inflação do Brasil e professor da FEA-USP. “Com a intervenção militar, para que o governo se viabilizasse, era muito mais importante manter o crescimento do que combater a inflação. No início, com a introdução da correção monetária, houve uma convivência amigável com a inflação, porque ela apresentou redução até 1973. Mas, a partir do choque do petróleo desse ano, a coisa mudou totalmente de figura.”

Depois, nos anos 1980, foram tentadas alternativas “cada vez mais exóticas” de controle dos preços, que culminaram com o confisco da poupança do Plano Collor. Só o Plano Real funcionou, ao trazer um “paradigma diferente, de fazer ajustes antes e explicar por meio da imprensa o que estava sendo feito, convencendo os agentes econômicos de que não havia razão de trazer prejuízos”. Mas engana-se quem pensa que o Plano Real funcionou magicamente, sem muito esforço por parte de todos os envolvidos. O projeto foi liderado pelo ministro da Economia entre 1993 e 1994, Fernando Henrique Cardoso, e inclui nomes como os de Bacha, Pedro Malan, Pérsio Arida, André Lara Resende, Gustavo Franco e Gustavo Loyola em suas fileiras.

O jurista, historiador e diplomata Rubens Ricupero sucedeu FHC, quando este se candidatou à presidência da República, e colocou o plano em ação durante a sua permanência no Ministério da Fazenda, entre março e setembro de 1994. Ele conta que, na véspera de lançamento do Real, o presidente Itamar Franco ainda tinha dúvidas se não seria melhor recuar e apostar em uma proposta mais conservadora e simples, similar às anteriores, por meio do controle de preços. No dia 30 de junho de 1994, Ricupero estava incumbido de levar a Itamar a medida provisória que consolidava o plano.

Naquele dia, o presidente enviou o então ministro da Justiça, Alexandre Dupeyrat Martins, ao Ministério da Fazenda. Ele foi recebido por Ricupero e Pérsio Arida. “Dupeyrat começou a adotar uma atitude de inspetor escolar severo, contestando pontos da proposta, até sendo impertinente”, lembra Ricupero. O então ministro levantou-se irritado e ligou para o Palácio do Planalto. Em uma conversa com Ruth Hargreaves, então secretária pessoal do presidente, exigiu um contato com Itamar. “Se o presidente não me chamar nas próximas horas para conversar, algo muito grave vai acontecer”, determinou.

“Vou perguntar ao presidente quem é o ministro da Fazenda”, retrucou Ricupero a Dupeyrat. “Não preciso do cargo e vou embora”, repetiu ele. Na conversa com Itamar, o presidente confirmou a Ricupero seu papel como ministro da Fazenda, reiterando sua confiança no Plano Real. No dia seguinte, o projeto foi colocado em prática.

O trabalho envolvia conversas com os setores, para entender as suas políticas de preços. O principal responsável por este trabalho era Milton Dallari, que havia sido responsável pela secretaria especial de abastecimento de preços durante o ministério de Delfim Netto. Durante os primeiros meses, houve mais de 2 mil reuniões com os vários segmentos da economia brasileira. “Discutíamos detalhadamente os preços-diretores da economia, que nada mais eram do que a taxa de câmbio, os juros e a inflação, o que rege toda a economia do país. Rodamos praticamente o Brasil inteiro fazendo reuniões cujo objetivo básico era implantar a URV (uma moeda intermediária criada antes do real entrar em circulação) sem fazer controle de preços”, conta Dallari. “A gente chegava numa reunião, por exemplo, com a indústria farmacêutica e falávamos: ‘nós precisamos fazer uma conversão dos preços atuais da indústria em URV’. O remédio Novalgina, por exemplo, quanto custa? Custava 1 cruzeiro novo, por exemplo. ‘Olha, ele vai custar agora uma URV.’ Muitos não conseguiam entender, até que a gente foi explicando, explicando, didaticamente, para que todos os empresários compreendessem que era uma liberação de preços, porém com acompanhamento.”

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Foi graças a histórias como essas que o Brasil deixou para trás as filas nos supermercados para comprar produtos antes que encarecessem, uma necessidade de praticamente todas as famílias do país. Entre dezembro de 1989 a março de 1990, os preços dobraram a cada 35,1 dias. Se comparada com as maiores hiperinflações da história, a brasileira e a de outros países da América Latina podem até parecer brandas. Segundo um estudo realizado pelo americano Steve H. Hanke, professor de economia aplicada na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, e um dos maiores especialistas do mundo no assunto, ocorreram 62 hiperinflações no mundo — nas quais a taxa mensal ultrapassou os 50% ao mês.

As piores delas foram na Hungria do pós-guerra, quando os preços dobravam a cada 15 horas, e no Zimbábue, de 2007 a 2008, quando isso acontecia a cada 24,7 horas. A mais clássica, porém, foi a da Alemanha no período entreguerras. Quando o país deixou de pagar em 1922 as contas previstas pelo Tratado de Versalhes, teve invadido pelos franceses o Vale do Ruhr, o coração industrial do país, e a sua produção interrompida. O resultado foi que o marco, que valia 25 centavos de dólar em 1914, chegou a ser cotado a 4,2 trilhões por dólar, em 1923. Em um único dia, o preço do pão disparou de 20 mil para 5 milhões de marcos. Tamanha confusão econômica estimulou Adolf Hitler a tentar, nesse mesmo ano, o Golpe da Cervejaria, que apesar de não ter sido bem sucedido o credenciou para uma década depois tomar o poder do país para os nazistas.

“A maioria dos países de mercado emergente tem bancos centrais com grande poder discricionário e muito pouca credibilidade. Raramente, cumprem suas metas de inflação e, em geral, produzem moedas lixo. Nesse sentido, o Brasil não é exceção”, responde duramente Hanke, que atuou no conselho de consultores econômicos do presidente Ronald Reagan, entre 1981 e 1982, para enfrentar a inflação da época, e que ainda foi chamado para combater crises monetárias na Argentina (1991), Estônia (1992), Lituânia (1994), Bulgária (1997), Bósnia-Herzegovina (1997) e Equador (2000).

Devido ao Plano Real, o Brasil não se viu, nas últimas décadas, em enrascadas tão grandes quanto às desses países e da Venezuela de hoje. Mas, mesmo que uma nova hiperinflação pareça distante, o governo atual precisa ser responsável para evitar que o país regrida. Afinal, como a questão fiscal demonstra pouco controle, em especial, num momento que o governo federal pretende gastar mais para tentar uma reeleição, o único mecanismo de combate à inflação tem sido a taxa de juros determinada pelo Banco Central. Pode ser pouco.

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