Mercado de trabalho dá sinais animadores, mas impõe cuidados por inflação
Os índices de ocupação quebram recordes, o que melhora a vida das pessoas e impulsiona a economia — mas o movimento exige cautela
Muitas coisas melhoraram para José Lucilane da Silva, um ex-auxiliar administrativo de 52 anos, desde que conseguiu voltar a trabalhar, em 2022, após quase três anos de desemprego alternado com serviços em que ganhava pouco e não era registrado. Com o salário que recebe atualmente como auxiliar na cozinha de uma pizzaria em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, o morador da Rocinha consegue pagar sem sustos o aluguel da casa onde mora sozinho, ajudar a família com os gastos do mês e arcar com o curso de radioterapia que seu filho começou a fazer. Também comprou uma televisão e, nos aniversários, comemora por poder dar presentes para o filho e a mãe. “Só de colocar comida dentro de casa já é um êxito muito grande”, diz Silva.
Ele é um dos 19 milhões de brasileiros que conseguiram se recolocar desde os piores momentos da pandemia, em 2020, e que colaboram, hoje em dia, para que o mercado de trabalho brasileiro ostente números superlativos, como há muito tempo não se via. A taxa de desemprego, que caiu a 6,8% em julho, está no menor nível desde 2014 e se aproxima — se já não passou — do chamado pleno emprego, uma situação virtual em que aqueles que restaram procurando trabalho são, em boa medida, um grupo transitório, com perfil diferente do que as vagas disponíveis requisitam. Como resultado da disputa crescente por profissionais, o salário médio também está nos maiores valores já registrados, e o número de pessoas com carteira assinada, que não para de crescer desde 2021, é recorde, assim como também crescem os grupos daqueles que trabalham como autônomos, como empresários e até no setor público, conforme mostram os dados mensais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
As marcas confirmam um mercado de trabalho pujante e que já se recuperou com folga não só do choque da pandemia, quando a taxa de desemprego disparou para quase 15%, mas também da letargia em que ficou preso depois da dolorosa recessão de 2015 e 2016, nos anos Dilma Rousseff. Na próxima sexta-feira, 27, o IBGE atualiza os números referentes a agosto e não será surpresa se todos seguirem testando novos recordes. “O mercado de trabalho ainda deverá continuar forte e, em dezembro, quando cresce a contratação dos temporários, a taxa de desemprego pode cair a 6%”, diz Bruno Imaizumi, economista da consultoria LCA.
Se confirmada a projeção, será o menor nível de desocupação observado desde, pelo menos, 2012, quando começou a série do IBGE. Para os trabalhadores, que vêm de uma década sofrida de desemprego alto, informalidade em disparada e salários minguantes, ser protagonista de um mercado aquecido é ótimo. Para a economia também, já que os aumentos de renda causados por esse movimento convertem-se em consumo e crescimento. Não à toa, os resultados do produto interno bruto também vêm surpreendendo trimestre a trimestre, num ciclo em que mais pessoas trabalhando ajudam a economia a acelerar, enquanto o PIB em ascensão leva a mais postos de trabalho.
Para as empresas, porém, os resultados são mistos. Se, de um lado, as vendas crescem, de outro começa a ficar mais difícil encontrar um novo funcionário. E, a depender da intensidade desse desequilíbrio, essa pode ser apenas a receita para a próxima crise — trata-se exatamente da mesma combinação traumática que transformou o crescimento acelerado de 2010 na profunda recessão de 2015. “Estamos chegando ao limite da exaustão da nossa reserva de mão de obra e isso em algum momento gera inflação, principalmente com as baixas taxas de investimentos e de produtividade que temos no Brasil”, diz Hélio Zylberstajn, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo. “Já vimos esse filme antes e não foi bom.”
A pressão nos preços ocorre porque a esticada na renda e no consumo se dá com mais velocidade do que a indústria é capaz de responder com oferta de produtos, ou porque, simplesmente, os salários vão subindo e virando, eles próprios, um custo maior para a produção. Não à toa, os sinais de que isso já esteja acontecendo foram uma das justificativas dadas pelo Banco Central, na quarta-feira 18, para aumentar, pela primeira vez em dois anos, a taxa básica de juros, a Selic. “A atividade econômica e o mercado de trabalho têm apresentado dinamismo maior do que o esperado”, destacou o BC em seu comunicado. “É raro ouvir que as empresas estão desligando seus funcionários ou fazendo corte de pessoal”, diz Fernando Mantovani, diretor-geral da consultoria de recrutamento Robert Half, especializada na busca de candidatos com nível superior. “Elas têm receio de perder os profissionais, já que não está fácil achar no mercado.”
Diversas estatísticas confirmam essa realidade. Nas sondagens empresariais feitas pela Fundação Getulio Vargas (FGV), a falta ou o encarecimento da mão de obra, que andava sumida das respostas, já voltou a figurar entre as principais preocupações dos empresários. Outro levantamento, o Salariômetro, da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, mostra que, até julho, mais de 80% das negociações salariais (veja o gráfico) entre sindicatos e empresas neste ano resultaram em reajustes acima da inflação para os empregados. É uma marca que há uma década não era alcançada. “A bola agora está com os trabalhadores, se o salário não estiver bom, eles vão trocar por outro mais atraente”, diz Zylberstajn, que coordena a pesquisa. Foi o que aconteceu com o analista de software Nicholas Alves. Aos 24 anos e formado há três, ele já dobrou o salário depois que pediu demissão da consultoria de TI onde trabalhava até o ano passado. “Não via perspectiva de crescer ali e fui buscar algo que desse benefícios melhores”, diz Alves. Há alguns dias, ele começou no novo emprego como desenvolvedor de software em uma companhia de comércio eletrônico.
Principal marca do apagão generalizado de mão de obra a que o país assistiu em 2010, a falta do profissional de alta qualificação não parece, entretanto, ser o principal gargalo de agora — o que, ressalta-se, pode ser indício de que o país passou por mudanças importantes, e positivas, nesse meio-tempo. “Nunca tivemos uma população ocupada tão escolarizada quanto agora, e essa é certamente uma diferença em relação àquele período”, diz Rodolpho Tobler, economista que coordena as sondagens da FGV. Entre 2012 e 2023, a proporção dos trabalhadores com ensino superior completo subiu de 14% para 23%, de acordo com o IBGE.
Um levantamento da Confederação Nacional do Comércio mostra que são principalmente ocupações de nível técnico ou médio que aparecem entre as mais requisitadas. A lista é dominada por cargos como os de vendedor, garçom, pessoal ligado à manutenção (como faxineiros, piscineiros e eletricistas) e auxiliar em geral. A pesquisa mapeou, entre as centenas de profissões existentes no cadastro geral de emprego, o Caged, do Ministério do Trabalho, aquelas que estão tendo aumentos de contratação e de salários acima da média. É um indicador conjunto de quais áreas estão precisando pagar mais para contratar e que, portanto, sofrem com algum nível de escassez. A conclusão é de que tal situação atinja atualmente 40% das profissões, um nível de estrangulamento que, em uma década, nunca tinha sido registrado. “O recado é que a economia está precisando não de engenheiros, advogados ou contadores, mas de profissionais que lidam com as situações do dia a dia e que dão apoio aos que têm nível superior”, diz Fabio Bentes, economista da Confederação do Comércio.
No caso da construção, um dos setores que mais sofreram com a caça desesperada por engenheiros nos anos de 2010, o desafio está sendo encontrar os operários. “A mão de obra operacional está diminuindo”, afirma Leandro Melo, diretor-executivo de engenharia do Grupo ADN, dono das construtoras ADN e Livon. “Antes, os pais traziam os filhos com eles. Agora, eles conseguiram oferecer uma opção diferente para a família, e os que puderam foram estudar e mudaram de ramo.” Felipe Kobylko, sócio-diretor da Stog Engenharia, que também gere projetos na construção, compartilha de um cenário semelhante. “Precisamos de pedreiro, bloqueiro, eletricista, encanador e, muitas vezes, não conseguimos encontrar”, diz. Os jovens que foram fazer engenharia no boom de 2010, por sua vez, já estão agora no mercado há dez anos. “Também está difícil achar, mas não tanto”, afirma Melo. André Yuki, dono do restaurante Água Doce Cachaçaria, no município mineiro de Varginha, tem contornado seu “apagão” de garçons com mais digitalização no atendimento. “Desde que passou a pandemia, eu tenho vagas e não consigo completar”, afirma Yuki. Cardápio digital e celulares que auxiliam os atendentes na gestão dos pedidos ajudam a fazer com oito funcionários o que antes era realizado com dezesseis. “Antes, para cada vaga aberta, recebíamos cinquenta currículos. Hoje, não passam de vinte”, diz o empresário.
O aumento da escolaridade é uma das várias hipóteses para o fato de que a própria noção de pleno emprego possa estar mudando — para melhor — no Brasil. Ela é uma medida imaginária que tenta estimar qual é o limite de pessoas que um país consegue empregar sem que a economia comece a sofrer com falta de gente e aumentos desenfreados de preços. É algo que está ligado à qualificação dos profissionais e à produtividade de cada país em frentes como tecnologia e infraestrutura, e o que explica, por exemplo, o nível de desemprego se acomodar historicamente na faixa dos 4%, com tranquilidade, nos Estados Unidos, enquanto no Brasil, a pouco menos de 7%, os problemas já começam a aparecer. “Antes da pandemia, essa taxa era estimada entre 8% e 9% no Brasil, e, agora, pode ser que já esteja mais entre 7% e 8%”, diz Tobler, da FGV, mencionando fatores como o avanço da digitalização, acelerado em especial depois dos choques comportamentais da covid-19, e a reforma trabalhista, que, de 2017 para cá, flexibilizou os rígidos formatos de contratação do mercado brasileiro. Não se sabe, ainda, se isso já é suficiente para contar agora uma história com final diferente daquele a que assistimos em 2015 e 2016. Tanto empregados quanto empregadores esperam que sim.
Colaborou Letícia Yamakami
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911