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Como a crise do coronavírus força a evolução do capitalismo moderno

A pandemia se transformou na oportunidade de bilionários, financistas e grandes empresários mostrarem comprometimento com causas sociais

Por Daniel Hessel Teich
Atualizado em 10 abr 2020, 10h47 - Publicado em 10 abr 2020, 06h00

Um dos economistas mais influentes do século XX, o inglês John Maynard Keynes (1883-1946) não escondia sua opinião sobre a incapacidade do capitalismo de promover por conta própria o bem­-estar da sociedade. Para ele, a lógica por trás do acúmulo de capital estava fundeada de tal forma na obsessão pelo lucro e no individualismo que não havia espaço para questões sociais. “O capitalismo é a crença segundo a qual nem mesmo o mais insignificante dos homens fará a mais insignificante das coisas para o bem comum”, definiu. Segundo Keynes, tal posicionamento é uma decorrência do animal spirit (espírito animal) dos empresários e financistas, alimentado pelo laissez-faire liberal. Obviamente, vista pelas lentes atuais, essa concepção é hoje exagerada, e o próprio capitalismo já encontrou mecanismos para domar seu lado mais selvagem — coisa que os relatórios de responsabilidade social das empresas costumam exibir com números e imagens tocantes. Ainda assim, chama atenção o comportamento de alguns dos mais notáveis ícones do mundo do dinheiro em meio à pandemia de coronavírus que assola o planeta.

Bill Gates, fundador da Microsoft, tornou-se provavelmente a face mais emblemática do apelo à ação dirigido aos ricos e poderosos do planeta. Dono de uma fortuna estimada em 100 bilhões de dólares, posicionou-se desde o princípio da epidemia como defensor de uma rígida quarentena nos Estados Unidos, mesmo com a ameaça de derrocada financeira e vultosos prejuízos às empresas e a oposição da maioria de seus pares e do presidente Donald Trump. Em seguida, anunciou a doação de 125 milhões de dólares a fundos de amparo a vítimas. Não bastasse, há duas semanas, em 3 de abril, afirmou em um programa de TV que apoiará financeiramente o desenvolvimento de sete novos produtos farmacêuticos com potencial de se transformarem em vacinas contra o coronavírus. “Vamos bancar esses projetos e fazer com que as coisas andem mais rápido. Sabemos que provavelmente apenas um ou dois deles trarão o resultado que esperamos, mas, quando isso acontecer, teremos tudo pronto para produzi-los e nos empenhar para que cheguem mais depressa às pessoas, provavelmente a partir de setembro”, explicou. “Gastaremos alguns bilhões de dólares nisso, mas o que é esse valor diante dos trilhões de dólares e das vidas que perderemos com a epidemia?”

O dono da Microsoft não está sozinho. Por todo o mundo, empresas se envolveram na produção de produtos para uso no combate ao vírus ou para ajudar a atenuar o efeito dos impactos econômicos da epidemia. O investidor húngaro George Soros, que tem uma fortuna de 7 bilhões de dólares, doou 1 milhão de dólares para a luta contra o coronavírus em Milão e quantia similar à sua cidade natal, Budapeste, não sem antes atacar os europeus pelo fracasso no controle da crise. Jack Ma, fundador do Alibaba, colosso chinês do comércio on-line, despachou mais de 500 000 kits de testes contra o Sars-CoV-2 e 1 milhão de máscaras para os Estados Unidos ao saber que o país não dispunha desse material para fazer frente à chegada do vírus a seu território. Da mesma forma, enviou 1,5 milhão de kits para testes rápidos, 20 000 kits para a realização de análises laboratoriais, 100 000 máscaras de uso médico e 1 000 uniformes de proteção para ser distribuídos nos países africanos mais atingidos pela doença.

EMERGÊNCIA – Conserto de respiradores na fábrica da GM no Brasil: ação contra o vírus (GM/Divulgação)

No Brasil, a Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) contabiliza as doações para minimizar os impactos da Covid-19 no país. A boa notícia é que os capitalistas brasileiros parecem ter entrado em sintonia com seus pares globais nesse esforço. Feitas por bancos, empresas e pessoas físicas para ampliar a estrutura hospitalar e amparar a população mais vulnerável, as contribuições já ultrapassaram a casa dos 850 milhões de reais (o que é muito em nossa rala tradição de filantropia). A Fundação Itaú Social e o Instituto Unibanco lideram, juntos, a lista, com 150 milhões de reais empenhados em diversas ações. O BTG, do banqueiro André Esteves, separou 50 milhões. Em paralelo, a ONG Gerando Falcões, ligada ao investidor Jorge Paulo Lemann, levantou 8 milhões de reais para ser aplicados na compra de víveres destinados a famílias afetadas pela crise. “O governo sozinho não vai resolver a situação. É um problema que cabe à sociedade como um todo”, diz Edu Lyra, presidente da entidade.

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Não há dúvida de que os governos, em geral, são muito mais rápidos no anúncio de medidas que em sua execução. Na entrevista em que anunciou seu apoio ao desenvolvimento das vacinas, Gates resumiu o que existe por trás do espírito filantrópico em tempos de coronavírus: “Não é apenas dinheiro. A questão é que nós podemos fazer isso de forma mais rápida, eficaz, sem entraves políticos e burocráticos”. Um discurso afinado com os fundamentos daquilo que os especialistas chamam de capitalismo corresponsável. “A era do capitalismo selvagem, a riqueza pela riqueza, não existe mais. A natureza do capitalismo está mudando, e o sistema está se tornando mais corresponsável”, explica o economista Ernesto Lozardo, professor da Fundação Getulio Vargas.

Os novos tempos parecem contagiar mesmo aqueles cujo espírito animal é extremamente feroz. Líderes de algumas das instituições mais agressivas nos negócios reconhecem que a situação exige uma transformação. Laurence Fink, fundador e CEO do fundo de investimentos BlackRock, que gere 230 bilhões de dólares em ativos, declarou que “o fracasso dos governos em prover respostas para os problemas que enfrentamos leva a sociedade a olhar para as empresas e chamá-las para ajudar na solução”. Jamie Dimon, presidente do banco JP Morgan Chase, foi na mesma linha e disse recentemente que as instituições mais ricas do mundo precisam deixar de lado o imediatismo do lucro rápido. “Precisamos partilhar as recompensas de nosso crescimento”, afirmou. A pandemia do coronavírus e o caos econômico à vista tornam-se a oportunidade ideal para que os adeptos do capitalismo sensível mostrem que tais frases não são apenas retórica. Mas um novo princípio.

Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682

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