As livrarias célebres (e pequenas) lutam para sobreviver
A crise das megastores abre espaço para as pequenas lojas, que também enfrentam dificuldades mas cativam um público que demanda atenção
“As livrarias são fortes solitários, espalhando luz sobre a calçada. Elas civilizam seus bairros.” A frase, atribuída ao escritor americano John Updike, ganhou especial significado nos tempos de quarentena, que afastou as pessoas e tornou as livrarias ainda mais solitárias. Esvaziadas, algumas das mais famosas lojas do mundo estão com sua existência ameaçada. Um dos casos mais dramáticos é o da Shakespeare and Company, de Paris, que nos anos 1920 era frequentada por escritores como Ernest Hemingway e Scott Fitzgerald, e que publicou Ulysses, de James Joyce. Fechada pelos nazistas na II Guerra Mundial, ela corre o risco de encerrar suas atividades pela segunda vez devido à vertiginosa queda de vendas. Entretanto, sua proprietária, Sylvia Whitman, não pretende desistir. Com ações entre amigos, vendas on-line e os melhores títulos para quem gosta de ler, a Shakespeare and Company tem atributos para sobreviver, assim como outras do mesmo estilo mundo afora, inclusive no Brasil.
A crise das grandes livrarias não vem de hoje. Instaladas em grandes shoppings ou em estruturas faraônicas de rua, elas enfrentam há anos elevação de custos operacionais em uma ponta e demanda em declínio na outra. Mas o maior adversário é a Amazon. O mamute do comércio eletrônico, que levou muitas lojas do varejo tradicional à falência nos Estados Unidos, tem uma política agressiva de preços, que oferece descontos entre 30% e 50%, com os quais as lojas físicas, carregando pesados custos, não conseguem competir.
Nos Estados Unidos, das redes que no passado dominavam o mercado editorial, hoje só resta a Barnes & Noble, que perdeu toda a opulência de antes. No Brasil, a Saraiva e a Livraria Cultura, que já foram as duas maiores redes do país, estão envolvidas em complicados processos de recuperação judicial e risco constante de falência, além de enfrentarem a falta de produtos. “É impossível para uma livraria física, que tem altos custos, competir com canais on-line apenas no preço”, diz Marcos Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros.
Como o capitalismo tende a ocupar espaços vazios e nem todos gostam de pescar livros na internet, o mercado está vendo o surgimento de uma nova leva de livrarias que busca seu lugar ao sol fugindo da guerra predatória e focando seu público. Elas estão criando novos modelos de negócios e vão razoavelmente bem mesmo em meio aos problemas impostos pela quarentena. Apesar da queda de receita de 45% no início da crise, o mercado foi se recuperando, e o resultado em outubro ficou 25% acima do registrado no mesmo mês do ano passado.
Em Pinheiros, bairro de classe média alta de São Paulo, a livreira Monica Carvalho montou uma loja acolhedora, de apenas 120 metros quadrados, que se tornou ponto de encontro de leitores. A Livraria da Tarde é administrada por ela e por dois funcionários. O local tem café, promove cursos e saraus, transmitidos virtualmente durante a pandemia. O modelo é parecido com o da Mandarina, também localizada em Pinheiros, que recentemente realizou um evento sobre literatura russa. “Meu cliente não procura preço, procura boas sugestões de leitura. Conversa sobre livros enquanto toma um café com a gente. Ele aceita pagar o preço cheio do livro porque recebe tudo isso junto”, diz Roberta Paixão, uma das sócias. As duas livrarias foram abertas no ano passado e, segundo as fundadoras, estão fechando no azul.
Ainda que os ventos estejam soprando a favor dos pequenos varejistas de loja única, que buscam atender um cliente diferenciado, algumas redes também estão conseguindo se expandir, mantendo a estratégia de ter lojas de pequeno ou, no máximo, médio porte. É o caso da carioca Livraria da Travessa, a paulistana Livraria da Vila e a mineira Leitura, que estão, inclusive, abrindo unidades em meio à pandemia. A Leitura, fundada em Belo Horizonte em 1967, é a maior dessas redes, devendo encerrar o ano com oitenta estabelecimentos. Em 2021, ela deve investir cerca de 20 milhões de reais na expansão. O modelo de negócios é baseado na meritocracia. Marcus Teles, presidente da empresa, explica a VEJA que, para incentivar a concorrência interna, geralmente um gerente é convidado a ser sócio quando um novo ponto é aberto. Segundo Teles, o crescimento é sustentável, a rede não tem dívidas e os empreendimentos começam com capital próprio.
O crescente sucesso das livrarias de bairro pode deter o avanço do comércio eletrônico? Certamente não, e esse nem é o objetivo, dada a luta inglória. A venda on-line é incontornável, pois é prática, rápida e, na maioria das vezes, mais econômica. Mas as livrarias acolhedoras, como a Shakespeare and Company, sempre poderão oferecer atenção, lazer, curadoria e troca de ideias a seus clientes de uma forma que as megastores e as lojas virtuais são incapazes de fazer. Ainda assim, parafraseando Updike, o fundamental e bonito é que as livrarias continuem espalhando luz — e conhecimento —, onde quer que estejam.
Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716