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A guerra fria dos impostos

Enquanto Paulo Guedes não abandona a ideia de ressuscitar a CPMF, Jair Bolsonaro apoia outro modelo de tributo

Por Machado da Costa Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 27 set 2019, 09h34 - Publicado em 27 set 2019, 06h55

Já lá se vão quase 150 anos desde que a anarquista francesa Louise Michel (1830-1905), uma das lideranças da Comuna de Paris, cunhou esta máxima durante a tentativa de implantação de um governo socialista: “Não se pode matar a ideia a tiros de canhão, nem colocá-­la em algemas”. Apesar do equívoco da proposta política, o pensamento se espalhou mundo afora, tornou-se um clássico e, nessa condição, pode ser convocado para resumir o que se passa nos bastidores do processo de reforma tributária em curso no Brasil. Há poucas semanas, o ministro da Economia, Paulo Guedes, prometeu enterrar a ideia de trazer de volta uma espécie de CPMF ao demitir o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra. “Morreu em combate nosso valente Cintra”, lamentou, a um grupo de empresários. O ex­-auditor José Barroso Tostes Neto foi colocado em seu lugar, na esteira das declarações do presidente Jair Bolsonaro — alguém duvida que um tiro do chefe do Executivo seja de canhão? —, que havia assegurado que não existiria a menor chance de retorno de nada parecido com o antigo “imposto do cheque”. No entanto, a ideia sobrevive, como ensinou Louise Michel, e começa a ganhar cada vez mais adeptos. Em sua penúltima edição, com data de 18 de setembro, VEJA publicou, na seção Página Aberta, um artigo do empresário Flávio Rocha intitulado “As macrovantagens de um microimposto”. O texto versava sobre uma alíquota pequena, cobrada sobre movimentações financeiras — tal e qual a CPMF, imposto que vigorou entre os anos de 1997 e 2007. O artigo rodou pelo Ministério da Economia. “Estamos de acordo com a ideia do Flávio e não abrimos mão dela”, disse um dos principais interlocutores de Guedes.

Manter tal projeto vivo tem resultado em clima de autêntica guerra fria em algumas das principais frentes da República envolvidas diretamente com a reforma tributária — e coloca em lados opostos importantes aliados da cena política brasileira. Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), são declarados adeptos do modelo proposto pelo economista Bernard Appy, que prevê a adoção do imposto sobre bens e serviços (IBS), baseado no imposto sobre valor agregado (IVA) europeu. De seus estudos nasceu a PEC 45, que tramita na Câmara e no momento se encontra na Comissão Especial, etapa que antecede sua ida a plenário. Do outro lado estão Guedes e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que desejam protagonizar a discussão da reforma, uma vez que os louros da Previdência ficaram com a Câmara.

No Senado, Major Olimpio (PSL-­SP) e Roberto Rocha (PSDB-MA) montaram um plano. Já tramita na Casa a PEC 110, que transforma oito impostos federais, além do ICMS esta­dual, em um único IVA. À proposta será adicionada uma emenda que cria também um imposto sobre movimentação financeira (IMF), ou seja, algo muito semelhante à CPMF. Luiz Carlos Hauly, o autor do texto da PEC 110, já deu anuência à ideia. O motivo para se agarrar a esse tributo, que causa a chamada cumulatividade — quando a incidência de um tributo recai sobre diversas etapas da cadeia produtiva —, é a desoneração da folha de pagamentos, uma panaceia, na visão de Guedes, que impulsionaria o emprego. Ele aposta que, uma vez retirada a contribuição patronal para o INSS, de 20%, algum espaço para novas contratações será aberto no orçamento das empresas.

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TEMPO QUENTE - Copacabana Palace: o setor hoteleiro teme alta de tarifas (Claudia Carmello/Reprodução)

Parte da indústria — outrora ferrenha opositora ao imposto do cheque — deixou de ver a sugestão com maus olhos. É importante ressaltar que o grupo de industriais em questão já tem a folha desonerada em troca do recolhimento de 1% a 2% do faturamento — um benefício dado em 2013 pela ex-­presidente Dilma Rousseff. Em julho, Synésio Batista, presidente da Abrinq, associação de fabricantes de brinquedos, pôs sua reputação à prova e convocou outros 34 presidentes de associações fabris para vender a ideia de Flávio Rocha. Todos assinaram um manifesto nesse sentido. Hoje, essa turma está em rota de colisão com outra, que financiou os estudos da PEC 45, de Appy. O economista é diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), órgão custeado por Itaú, Natura, Souza Cruz, Braskem, Vale, Ambev, Votorantim e Huawei. As oito empresas integram o conselho de orientação do think tank, supervisionam suas atividades e definem o que será desenvolvido. A ressalva da equipe econômica ao projeto que tramita na Câmara está justamente na influência dessas empresas sobre a possível reforma tributária. O temor é que, ao buscar reequilibrar as contas do país ajudando a parcela da indústria não contemplada com a desoneração de 2013 e o setor financeiro, o modelo do IVA da proposta de Appy acabe por prejudicar, numa outra ponta, os serviços — que teriam um aumento de carga tributária de aproximadamente um terço —, desarranjando assim, de vez, a economia. Os setores hoteleiro, de educação, saúde e transportes urbanos seriam alguns dos que mais sofreriam.

A dificuldade de Guedes em estabelecer uma linha de ação para a reforma foi um dos fatores que permitiram a fritura de Cintra e sua queda. O vai ­e vem sobre se há ou não uma nova CPMF nos planos do Ministério foi a oportunidade que o Planalto queria para poder apaziguar os ânimos com aliados de peso, como o presidente do STF, José Antonio Dias Toffoli, e Rodrigo Maia. O deputado, aliás, tenta se aproximar do ministro. “Conte com este presidente da Câmara”, disse Maia a Guedes, deixando claro que prefere tê-lo a seu lado.

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MISSÃO - José Barroso Tostes Neto, secretário da Receita: freio nos lavajatistas (Pedro França/Ag. Senado)

Em seus primeiros dias como secretário, Tostes Neto já fez por merecer o cargo e a confiança do Planalto: cortou a cabeça do chefe de inteligência da Receita, Ricardo Pereira Feitosa, um integrante do grupo dos lavajatistas que estavam perseguindo — na visão de Bolsonaro — membros do Supremo. Contudo, Tostes Neto terá a influência limitada ao órgão que pilota. Rogério Marinho, secretário de Previdência, está designado para fazer a articulação com os parlamentares. Resta saber quem será o responsável por formatar a proposta. Ventila-se o nome de Vanessa Canado, braço-­direito de Appy no CCiF.

A missão do novo engenheiro da política tributária, que ganhará o cargo de assessor especial do ministro, será apresentar um texto que permita a criação de um IVA que não abale setores que hoje pagam poucos impostos. Para isso, precisará encontrar uma fórmula de desoneração da folha de pagamentos sem diminuir a arrecadação. Internamente, Guedes deixa claro que a CPMF ainda é sua ideia preferida. Entretanto, pode ser que desista de ser alvo de disparos — de Bolsonaro, da Câmara, da sociedade. O fato é que o ministério tem divulgado uma espécie de plano B, no qual haveria a tributação de rendimentos e dividendos. Talvez seja mais um balão de ensaio, como tantos que Guedes soltou na preparação da reforma da Previdência — ele sabe que a alternativa desagrada aos aliados do governo, todavia pode estar querendo testar a opinião pública. O que importa é que já passou da hora de o ministro entregar seu projeto definitivo de modelo tributário. E, se a ideia da CPMF é imune a canhões, que a enterre — e acabe com o clima de guerra fria.

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Publicado em VEJA de 2 de outubro de 2019, edição nº 2654

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