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A fome destrói a paz

Para que o Brasil cumpra seu decisivo papel de ajudar a alimentar o mundo, será preciso mais investimentos em ciência e tecnologia e segurança jurídica

Por Roberto Rodrigues*
Atualizado em 26 nov 2019, 19h40 - Publicado em 28 dez 2018, 07h00

Um dos mais complexos desafios da humanidade no século XXI será compatibilizar a oferta de alimentos de qualidade a uma população crescente e mais longeva com a preservação dos recursos naturais para as gerações futuras. E já sabemos que a segurança alimentar é a única garantia de paz universal: a fome destrói a paz.

Com essa visão, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos realizou estudo que concluiu que o mundo terá de produzir 20% a mais de alimentos em dez anos para suprir a demanda global; e que, para isso acontecer, o Brasil precisará elevar sua oferta em 41%, o dobro da meta mundial. Essa situação decorre de três condições peculiares: temos a melhor tecnologia tropical e sustentável do planeta, terra disponível para crescer e sobretudo gente competente nos diferentes elos das cadeias produtivas.

Quanto à tecnologia: do Plano Collor, lançado em março de 1990, até agora, a área plantada com grãos no país aumentou 65% e a produção cresceu 307%. Se tivéssemos a mesma produtividade de grãos por hectare do tempo do Plano Collor, além do que hoje é cultivado (62 milhões de hectares), seria necessário desmatar e plantar outros 92 milhões de hectares para colher a safra deste ano. De lá para cá, a produção de carne de frango elevou-se 475%, a de suíno 250% e até a de carne bovina, com ciclo mais longo, cresceu 98%. Com isso, a participação da cesta básica no orçamento das famílias brasileiras caiu de 55% para 15% em menos de cinquenta anos, liberando recursos para outros gastos.

Novas tecnologias sustentáveis vêm chegando, sempre com o objetivo de promover o que há de mais moderno no mundo rural. Sistemas integrados de produção, com nanopartículas espalhadas pelo campo, informarão a temperatura e a umidade do ar e do solo e a velocidade do vento, indicando a melhor hora para combater pragas e doenças com defensivos mais sustentáveis. Máquinas “conversarão” entre si, sem operadores. Drones sobre­voa­rão áreas cultivadas e mostrarão com precisão onde deve haver a intervenção do gestor. Startups desenvolvem sofisticados modelos de gestão de custos, de risco, de recursos humanos, tributária e ambiental.

Graças à agroenergia, o etanol emite apenas 11% do gás carbônico emitido pela gasolina. O etanol, o biodiesel e a bioeletricidade economizarão bilhões de dólares na importação de petróleo e derivados, ajudando o Brasil a atingir a meta assumida na COP21, em Paris, de reduzir em 43% a emissão de gases do efeito estufa até 2030.

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Todo cidadão participa das ações do campo; quando não contribui para a produção, responde pelo consumo

Quanto à área plantada: segundo a Embrapa, dos 850 milhões de hectares do nosso território, somente 9% estão ocupados com todas as culturas do agro, inclusive florestas cultivadas. Em outros 21,2% há pastagens. Quando se soma tudo (pastagens e áreas agricultadas), temos apenas 30,2% de nosso território ocupado com todas as nossas atividades agrossilvopastoris. E 66,3% do território ainda tem vegetação nativa. A melhoria da exploração pecuária produzirá mais carne e leite em menos pastos, e cerca de 10 milhões de hectares destes poderão ser transformados em agricultura. Dessa forma será, sim, possível ao Brasil oferecer ao mundo uma produção de alimentos 40% maior em dez ou doze anos.

Precisamos de gente para tal. E felizmente há uma brilhante geração de jovens graduados em faculdades de ciências agrárias e em escolas de nível médio em todo o país trabalhando hoje em fazendas, cooperativas e associações rurais — nas áreas de pesquisa, ensino e assistência técnica pública e privada, em empresas de insumos e serviços, além de indústrias de equipamentos e de alimentos.

Tudo isso é bastante, mas não suficiente. Ainda será preciso uma estratégia que demandará o compromisso de todos os brasileiros. Para evoluir no campo, o produtor depende das cidades: pesquisas são feitas em organizações científicas ou universidades urbanas; fertilizantes, defensivos e máquinas são produzidos em indústrias urbanas; e serviços de assistência técnica, crédito e seguro são fornecidos por bancos ou empresas urbanas. As construtoras de estradas, ferrovias e portos e a indústria de alimentos são urbanas, assim como a de embalagens, os supermercados e as tradings. Em resumo, todo cidadão brasileiro participa direta ou indiretamente das ações do campo; quando não contribui para a produção, responde pelo consumo. Precisamos compreender que os governos dos países desenvolvidos estimulam seus produtores rurais com o objetivo de abastecer o consumidor urbano, porque ele é muito mais numeroso e a estabilidade política e social depende disso. E os consumidores urbanos apoiam políticas de garantia da renda rural porque ficam tranquilos quanto ao seu abastecimento. A Política Agrícola Comum, superprotecionista, foi uma decisão dos governos europeus de buscar a autossuficiência alimentar em consequência da fome experimentada na II Guerra Mundial. Urbano e rural são irmãos siameses.

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Hoje, estamos diante de um novo governo que fala claramente em estimular o agronegócio. Em 2019, colheremos uma grande safra de grãos, cuja produção se somará à de cana-de-açúcar, à de café e frutas, à de carnes e leite, à de hortigranjeiros, compondo 1 bilhão de toneladas — volume este que contribuirá para a alimentação dos brasileiros, o combate à inflação, o crescimento do PIB e o saldo positivo no comércio exterior. O Ministério da Agricultura será comandado por quem entende do riscado e tem nas mãos um plano de crescimento para o setor.

Mas, para que a estratégia funcione, precisaremos de empenho total: mais investimentos em ciência e tecnologia; segurança jurídica que garanta parcerias público-­privadas para investir em ferrovias, rodovias, hidrovias e portos; uma política comercial que traga acordos bilaterais com grandes países consumidores, reduzindo a escalada tarifária e permitindo agregação de valor; uma política de renda que priorize o seguro rural e a modernização e a desburocratização do crédito, porque assim bancos privados terão interesse em financiar o agro; uma defesa sanitária que elimine exageros, como o ocorrido durante a Operação Carne Fraca; estímulos a programas que acabem com o desmatamento ilegal, como o Pagamento por Serviços Ambientais previsto no Código Florestal; apoio ao cooperativismo e ao associativismo, que dão a escala essencial para a sobrevivência e o crescimento dos pequenos; regularização fundiária que permita ao produtor assentado em programas sociais obter as garantias a ser oferecidas aos agentes financeiros. E, sobretudo, precisaremos estar atentos à sustentabilidade, fator prioritário para a competitividade internacional de qualquer produto. Tudo isso é factível. Basta que os compromissos até aqui assumidos sejam implementados.

* Roberto Rodrigues é ex-ministro da Agricultura (2003-2006) e coordenador do Centro de Agronegócio da FGV

Publicado em VEJA de 2 de janeiro de 2019, edição nº 2615

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