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Direito e Economia: sob as lentes de Coase Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Por Paulo Furquim de Azevedo
Análises com o rigor e o método acadêmicos, mas com uma linguagem acessível para todos, sem os jargões e as firulas do texto acadêmico. Com a co-autoria de Luciana Yeung
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Economia como Ciência Sem Dinheiro? (Singela homenagem a Daniel Kahneman)

A Ciência Econômica vai além da discussão sobre preços, lucros e prejuízos

Por Luciana Yeung
3 abr 2024, 12h32

Toda profissão tem sua piada. A minha é que, quando as pessoas sabem que sou economista, querem conselhos para suas finanças pessoais. (Quantos motoristas de Uber já me pediram isso…)

A confusão entre Economia e Finanças ainda é forte, e confesso que não entendo bem de onde vem. Já faz quase um século, em 1932, Sir Lionel Robbins declarava ao mundo: “A economia é a ciência que estuda o comportamento humano enquanto os recursos são escassos e têm usos alternativos”. Essa é a definição oficial desde então (e não tem nada de dinheiro, finanças aí).

Para além da piada posta acima, a confusão entre Economia e Finanças causa um grande desserviço, principalmente quando lidamos com o Direito. Por que juristas e juízes teriam que, o tempo todo, avaliar questões financeiras, envolvendo dinheiro? Não têm! Mas juristas, e sobretudo juízes, precisam avaliar questões sobre o comportamento humano – e é por isso que estudar Economia pode ser valioso. Ouso dizer que a resistência de muitos juristas em aceitar a Análise Econômica do Direito está justamente em achar, equivocamente, que a análise econômica está inerentemente avaliando questões financeiras, de dinheiro, de preços. Isso, além de ignorar a definição de Lionel Robbins de quase um século atrás (um século!), ignora praticamente tudo o que foi feito nas ciências e na teoria econômica desde 1960.

Não me refiro somente à Economia Institucional – sobre a qual já discorri em outros textos desta coluna semanas atrás, e que obviamente não está relacionada a preços, dinheiro, finanças. Refiro-me também às teorias e modelos criados por um dos maiores economistas do século XX, Gary Becker, ganhador do Prêmio Nobel em 1992. Ele, desde jovem até o fim da vida, estudou, com o emprego da metodologia econômica, questões como discriminação de gênero e raça, educação, criminalidade, constituição de família e saúde. Becker criou diversas áreas na Economia e, hoje, esses temas são estudados pelos microeconomistas aplicados e empíricos. No Brasil, orgulhosamente, temos um grupo grande e extremamente ativo desses pesquisadores.

Indo mais atrás, na virada do século XX, Arthur Pigou dizia que era preciso avaliar, para além dos custos monetários e financeiros, os “custos sociais” – aqueles que são criados de maneira não esperada, por certos agentes privados sobre outros. Sua preocupação inicial era com fatores como a poluição e outras perturbações sociais. E, para isso, não só criou o conceito de externalidades, como também propôs maneira de resolvê-las – os famosos impostos pigouvianos. Ou seja, já no fim do século XIX, um economista se preocupava academicamente com questões ambientais – nada de mercados ou dinheiro! Claro que depois veio Ronald Coase, para propor solução alternativa às resoluções de externalidades. Nos meus cursos, a aula sobre externalidades é a que introduz a “necessidade” do Direito para a Economia – não fossem elas (entre outras “falhas de mercado”) o Direito não teria seu papel primordial para a teoria econômica.

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Mas, talvez de maneira mais convincente, a Economia pôde ser identificada como a ciência do comportamento humano quando passou a reconhecer e dar o seu maior prêmio para um… psicólogo. Em 2002, dez anos depois de Becker, Daniel Kahneman ganhou o Nobel em Economia pelos seus estudos na área conhecida hoje como Economia Comportamental. Diversos de seus trabalhos foram feitos com outro psicólogo, Amos Tversky, e não fosse a morte prematura de Tversky seis anos antes, aos 59 anos, certamente teria sido premiado juntamente com Kahneman. O Comitê do Nobel assim justificou o prêmio concedido ao cientista: “por ter integrado perspectivas da pesquisa em psicologia para a ciência econômica, especialmente naquilo referente aos julgamentos humanos e à tomada de decisão sob incerteza”,.

Mais especificamente, a Economia Comportamental, que Kahneman, Tversky e, posteriormente, Richard Thaler (também prêmio Nobel, mas economista de formação) ajudaram a desenvolver, tem demonstrado que o modelo de racionalidade ilimitada e perfeita que a microeconomia tradicional pressupunha pode falhar – algo que Herbert Simon, já na década de 1960 demonstrou com o conceito de racionalidade limitada (e também ganhou o prêmio por isso). Mas o que Kahneman e seus colegas demonstraram – e continuam demonstrando – é que essas falhas na racionalidade são previsíveis, passíveis de estudo, de modelagem e de uso para fazer previsões do comportamento humano. Isso faz toda a diferença, pois só assim essas “anomalias” passaram a ser suscetíveis de investigação científica e puderam, finalmente, ser incorporadas aos modelos analíticos de que a ciência econômica tanto gosta. Então, diferentemente do que alguns iniciantes supõem, a Economia Comportamental não veio “derrubar” a microeconomia clássica, em suas previsões sobre o comportamento e o processo de tomada de decisão das pessoas. A Economia Comportamental complementa a microeconomia clássica ao mostrar onde começam seus limites. Os novos insights da psicologia mostraram fenômenos como heurísticas, vieses (“viés do otimismo”, “viés da ancoragem” etc) e impactos de nudges no comportamento humano. 

Se a Economia Comportamental foi impactante na compreensão da tomada de decisão em contextos mercantis e comerciais (como em decisões de consumo ou investimento), ela também mudou completamente nossa compreensão sobre o comportamento e sobre as decisões humanas em contextos fora do sistema de preços, por exemplo em contextos jurídicos. Por que as pessoas não incluem determinadas cláusulas sobre riscos muito frequentes em contratos pré-acordados? Por que mesmo sem mudar o valor de uma multa de trânsito, a maneira como essa multa é colocada gera resultados de compliance diferentes? Como fazer campanhas de políticas sociais – por exemplo, nas áreas da saúde, nutrição etc – de maneira mais bem-sucedida? Por que mesmo com baixas chances de ganhos e ganhos potenciais baixíssimos, as pessoas insistem em prosseguir com ações judiciais? Esses são apenas alguns poucos exemplos de como a Economia Comportamental tem contribuído para a área do Direito e das Políticas Públicas. E esse é um movimento extremamente recente, que ainda terá muito desenvolvimento pela frente. Não é à toa que, no Brasil, a Economia Comportamental já tem feito muito sucesso entre alguns juristas.

No dia 27 de março, Daniel Kahneman teve seu merecido descanso e faleceu aos 90 anos. A ele, nossa imensa gratidão pelas suas gigantescas contribuições intelectuais, por ter nos ensinado um pouco mais de Economia, além de ter ajudado a mostrar que a Ciência Econômica vai além da discussão sobre preços, lucros e prejuízos…  

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